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Foto do escritorAlan Rangel

Breve descrição cotidiana de uma rocinha na Bahia


Leitores, passei 10 dias em uma rocinha, em Cícero Dantas, na Bahia, acompanhada de minha parceira em visita a seus pais. Cícero Dantas foi elevado a categoria de cidade em 1938; faz divisa com Novo Triunfo e Antas. Tem anos que não vivencio, com um tempo mais prolongado, a cultura local do campo. Foi uma boa experiência, sobretudo porque minhas lembranças na vida rural remetem-se à infância e uma parte curta da adolescência, nas férias escolares, no interior de meus parentes, São Felipe. O texto em voga é mais descritivo, com alguns pontos que me pareceram interessantes, sem esgotar as especificidades, num víeis crítico, mania crônica de cientista social. Boa Leitura.


De antemão, preciso destacar a tranquilidade da zona rural, o som da natureza, dos animais, sem o barulho e a poluição chata da grande cidade. Foi possível respirar ar puro e vivenciar o verde com alguma abundancia. Importante também perceber a sobrevivência, mesmo que rudimentar, de uma aura menos individualista, mais coletiva, do que o ethos liberal.


A vivência é bastante local, territorializada, mesmo num mundo globalizado, no qual tempo e espaço estão em extrema fluidez. Tudo isso leva a crer, obviamente, que o acesso a tecnologia é desigual e contextualizado. Quem aqui reside tem uma educação e formação tecnológica precária e muito incompleta. Respira-se muito o ar do século XX por essas regiões, e no que diz respeito ao uso de novas plataformas digitais e informacionais, há graves déficits. Até a luz elétrica só começou a chegar em 2008. Imaginem! A informação e tecnologia acompanhada, que acreditamos ser democrática, atualmente, na verdade ainda é artefato de luxo.


Como em muitos lugares do Brasil, e mundo afora, o local que estive é precário em muitos aspectos. Tecnologicamente falando, o sinal de telefonia e o wifi é péssimo. O comum é a segunda geração, 2G. Significa que fazer downloads, assistir vídeos, fazer ligações online e acessar outras informações é bastante complicado. Para quem está acostumado ao mundo hiperconectado, da web, como eu, é dolorido (risos).


Adultos, idosos e crianças, influenciados pelo ambiente rural e locais próximos, perpetuam práticas seculares discriminatórias. Por exemplo, o ser macho é visto com tons de superioridade. São considerados, obrigatoriamente, condutores de suas famílias, e, se não forem fortes, homens de boa índole, trabalhadores honrados e másculos em suas responsabilidades de macho alfa, são mal falados. Aliás, ser mal falado não é nada incomum. Mulheres, se não seguem a cartilha de boas moças (seja lá o que isso quer dizer) perante à comunidade são achincalhadas por vizinhos e familiares. Pessoas que alcançaram algum tipo de status ou ascensão econômica não escapam de alguma inveja. Homofobia, sexismo, machismo são também habituais.


Neste lugar não existe apreço pelo correto linguajar! As pessoas reproduzem uma inadequada construção da língua materna, em gênero, número e grau. Reflexo de um país que sempre negligenciou o desenvolvimento intelectual dos menos favorecidos no campo e também na cidade. É tradicional a linguagem local com léxicos inapropriados, em desacordo com a estrutura da língua portuguesa. Não me remeto a gírias, que são comuns em qualquer ambiente, mas o mal emprego de palavras e frases devidamente articuladas. Há também um exagero nos xingamentos, o que tem muito a ver com a pobreza no uso das palavras, reforçada pela limitação de um vocabulário mais elaborado, amplo.


É corrente o emprego desarticulado do “nós”, acompanhado sempre de um verbo. “Nós vai”, “nós come”, “nós bebeu”, “nós dormiu”. Esse tipo de banalização da ignorância se perpetua em famílias que vão morar nas médias e grandes cidades; vícios e erros de linguagem são normais nas periferias. Lecionando em faculdades, em Salvador, que recebem estudantes das classes C e D, é muito visível a dificuldade deles na expressão verbal. Isso tudo também está associada a deficiência na aprendizagem básica em nosso país. Reflexo: analfabetos funcionais e mediocridade intelectual! Não basta só sair do analfabetismo. A educação no Brasil ainda é um projeto inacabado. As elites econômicas e políticas continuam a desprezar a chamada democracia educacional.


A falta de ambição à ascensão social, projetos futuros e desenvolvimento de capital cultural e econômico é uma tônica bastante acentuada. A felicidade é calcada na simplicidade. Existe, aparentemente, mas não como regra, a concepção de que prosperidade está vinculada a satisfação de necessidades mínimas, em acordo com desígnios divinos. Simplifico, pois estou descrevendo pessoas que vivem na legalidade e na moralidade cristã; encaram o trabalho duro e a honestidade como condutas consonantes com crenças religiosas arraigadas. Ainda se cultiva a frase “bença” em vez de “benção” direcionada aos mais velhos, que respondem: “Deus te abençoe”. Prática de respeito familiar característica do velho catolicismo colonial em decadência.


Há uma relação de desprezo e ignorância ao científico. Ignorar bula de remédio, orientação médica e prevenção de exames rotineiros não é incomum. Tem gente consciente, evidente, mas o tradicionalismo é muito forte. Falta controle individual sobre questões básicas à boa saúde, como redução de açúcar, sal e gordura. O consumo exagerado de carne também é habitual. A alimentação é simples, resumida a feijão, arroz, carne (bovina, caprina, frango). Saladas e outros vegetais são bem negligenciados. São vários fatores envolvidos, que incluem a questão econômica e cultural. Tal como nas grandes cidades, os idosos apresentam algum tipo de problema, como diabetes, ulceras, cânceres, doenças cardiovasculares.


À guisa de conclusão, a falta de acesso ao conhecimento técnico e científico, a perpetuação de hábitos e práticas tradicionais, carregadas de preconceitos geracionais e crenças infundadas num senso comum rudimentar, nos mais diversos aspectos, é efeito da continuidade de um modus operandi que enxerga rotina, vida e relação social de forma irrefletida, sem um filtro adequado, e baseado em déficits de transgressão e crítica, comuns ao espírito do tempo, caracterizada por um mundo líquido. Inclusive este termo deve ser relativizado, como pude relatar.


Até a próxima!


Fonte da imagem: http://www.cicerodantasacontece.com/2019/04/projeto-de-ecoturismo-em-cicero-dantas.html


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