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POR QUE "PARASITA" É MUITO MELHOR DO QUE BACURAU?



A família Ki-taek mora em um porão úmido de um bairro pobre localizado no sul da Coreia, não tendo muita expectativa de vida, muito menos o privilégio de pensar sobre o futuro, já que todos estão desempregados. O desespero parece uma mancha insistente no corpo daquela família, até que uma oportunidade muda tudo por completo. Os Ki-taek, depois de um convite inesperado, começam a se infiltrar na casa e na vida de uma família rica (Os Park), assumindo funções importantes dentro desse espaço, o que cria o terreno perfeito não apenas de um enredo atraente, cheio de surpresas, conflitos e crises, como também de críticas complexas sobre o modo como a realidade funciona. Além disso, nunca perde o humor, fazendo desse filme uma combinação perfeita de muitos gêneros, transitando por vários tipos de linguagens cinematográficas, até mesmo invadindo o terreno hitchockiano do suspense. Sem dúvida, o filme “Parasita”, dirigido por Bong Joon-Ho, é uma obra que resgata uma reflexão social profunda, embora tenha uma característica única, ao menos em contraste com outras produções, como vai ficar claro ao longo do ensaio.


Em novelas, ou até em certos filmes do circuito de arte, com aquelas obras mais reflexivas e menos populares, quando o tema da desigualdade aparece, quando brota das cenas, um certo tipo de dualismo se forma, uma divisão meio que previsível acaba sendo sentida no interior do trama. De um lado, temos a figura do rico, daquele capaz de comprar e fazer o que quiser, normalmente representado como hipócrita, corrupto e superficial, enquanto o outro lado da história, ou seja, aquela parcela pobre, é retratada de uma jeito romântico, como se a pobreza carregasse algum tipo de ética embutida, uma virtude automática. Sem dúvida, esse modo "cristão" de narrar, onde a pobreza é uma virtude e a riqueza um desvio moral, acaba criando um contraste importante, o que pode produzir efeitos políticos decisivos. Apesar disso, esse modelo dualista, de opostos, é muito simplificado, beirando a infantilização da vida, da linguagem e do próprio cinema. Nesse modelo, enquanto o efeito do capitalismo é sentido na própria subjetividade dos personagens ricos, corroendo aquilo de mais íntimo e profundo, aqueles mais pobres, ao contrário, continuam preservando sua integridade, sendo afetados apenas em um nível superficial, ou seja, em suas condições básicas (materiais) de vida, quase como se tivessem uma essência intocada. É possível perceber esse nível de narrativa no Neorealismo italiano, em filmes clássicos como “A Terra Treme” e "Rocco e seus irmãos" de Luchino Visconti, ou filmes como “Coisas Belas e Sujas” (2002) ou até mesmo em obras mais recentes como “Bacurau” (2019). E isso apenas para trazer alguns exemplos de um circuito mais alternativo. Quando entramos em um terreno mais popular, envolvendo novelas, séries e desenhos animados, essa característica se torna bem óbvia, quase um padrão seguido por todos.


A dialética, ao menos a hegeliana, é uma ferramenta importante de análise, sendo que muitos reivindicam esse termo, às vezes até demais, chegando ao ponto da completa exaustão. Na dialética, ao contrário do que muitos pensam, não existem simples oposições, extremos, muito menos dualismos. No modelo dialético, existe um único movimento cortando a realidade, o que nos leva a um modo alternativo de entender as circunstâncias ao redor. Numa visão dialética, o bem não se opõe ao mal, mas fazem parte de um mesmo processo, um tipo de fluxo complementar. Da mesma forma, no filme de Bong Joon-Ho (“Parasita”), é possível perceber finalmente uma dialética bem feita, uma obra de arte que carrega traços de crítica social, mas sem despencar numa simplificação ou distorção do que acontece. Entendendo o capitalismo como um movimento que atravessa e constitui a realidade como um todo, Bong oferece não apenas personagens com uma psicologia profunda, mas também cenários complexos e um enredo interessante. Sem dúvida, a família rica é representada com superficialidade, em seus jantares teatrais e suas conversas sem sentido, o que poderia sugerir um perfil comum de narrativa. Embora esse detalhe exista e seja constante na trama, a família pobre, por outro lado, nunca é romantizada, como era de se esperar. Por conta do modo como vivem, eles são representados de uma forma complexa, apresentando traços de ressentimento, machismo, violência, inveja, além de uma mistura de outras sensações. Os efeitos do capitalismo, por esse motivo, são experimentados por todos, não existindo ninguém fora de sua esfera de influência, de sua estrutura. A crítica que brota da família Ki-taek, portanto, é resultado de um corpo ressentido, violado, não sendo simplesmente reflexo de uma criatura nobre que revela a verdade do mundo e preserva sua ética intocada.


A verdade, no filme, não brota de uma atitude racionalista, envolvendo personagens que pensam sobre as circunstâncias, mas sim de um corpo material e dilacerado. A pobreza, para Bong, não é uma virtude, não é uma vantagem ética, mas um poço de contradições. A verdade, em outras palavras, brota do próprio fluxo da vida, e não como um esforço distanciado de alguém esclarecido ou eticamente superior. No filme, não existe ética, a não ser como um traço superficial compartilhado pelas duas famílias, como se fosse um sintoma de corpos sem destino. Não existe bem, não existe mal, mas apenas uma realidade complexa e anti-heroica flutuando entre esses dois extremos, como se fosse um barco a deriva em um mar agitado. As duas famílias, ao participarem de uma mesma dialética, não são opostos, mas elementos de um mesmo fluxo, ainda que experimentem a vida de formas distintas, como é bem evidente na cena da chuva. Enquanto a família Park a contempla como se fosse um espetáculo no quintal de sua casa, confortáveis na sala de estar, os Ki-taek perdem tudo numa grande enchente, passando uma noite no mínimo desesperadora.


Eu tenho lido algumas comparações entre o filme “Parasita” e “Bacurau”, o que é de se esperar, já que ambas as obras tratam de temáticas sociais, além de mostrarem um mundo dividido entre aqueles que têm e aqueles que não, assim como as consequências desse abismo. Apesar das proximidades, os dois filmes trabalham os temas de formas diferentes, sendo o primeiro uma narrativa dialética perfeita, enquanto o segundo é meio que uma simplificação, uma dialética incompleta, embora conveniente. Em outras palavras, não basta apenas ter uma temática social, mas é sempre necessário algo mais, e é justamente isso, esse “a mais”, que o filme "Parasita" sugere. Embora apresentando uma estética muito bem elaborada, sendo um avanço se comparado com obras como "Som ao Redor", o filme “Bacurau” de Kleber Mendonça retoma mais uma vez um dualismo persistente na esquerda, pelo menos aquela mais superficial. Temos de um lado a figura do capitalista porco querendo apenas saciar seus desejos superficiais e egoístas e, do outro, uma comunidade pobre, embora unida e harmônica, carregando uma nobreza quase angelical. Como já disse, esse modelo de narrativa é útil, principalmente em instantes de crise política, mas ainda assim compromete a estética do filme. Da mesma forma que a obra de Spike Lee, “Infiltrados na Klan”, ou "Corra" de Jordan Peele, “Parasita” mostra que é possível um filme ter uma instrumentalidade, ao servir a um propósito político, mas sem perder seu lado estético pelo caminho, sem reduzir seus contornos a esse mesmo instrumental.


REFERÊNCIA DA IMAGEM:


https://www.youtube.com/watch?v=isOGD_7hNIY

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