Viver é viver a angústia do ser para a morte, segundo o talvez mais genial filósofo alemão do século XX, o controverso e profundo Martin Heidegger. A compreensão da finitude da vida é desde sempre a angústia das angústias humanas. Certa vez perguntaram a Caetano Veloso, numa entrevista num canal aberto quando ele havia acabado de completar sessenta anos de idade, se ele não tinha medo de morrer. Caê, grandioso como só ele, respondeu que não tinha medo, pois enquanto ele existisse, a morte não existiria, assim como quando ela viesse a existir, ele então já não existiria mais. Isso não significa dizer que mesmo ele, o filho de Dona Canô, em sua imensa sabedoria e glória, nunca tenha sentido a angústia das angústias. Não se trata nem mesmo de um sentir específico, mas de algo que permeia nossa existência. A angústia da morte só é angústia porque somos humanos, seres racionais que possuem a capacidade de pensar sobre o deixar de existir, ao pensarmos na vida enquanto oposto a esse desconhecido estado (ou não estado) de coisas.
O drama presença/ausência, pois é disso que se trata a relação da vida com a morte, é replicado nas mais diversas esferas da vida humana, do conhecimento aos jogos, da economia à política, da culinária às artes. A psicanálise de linha lacaniana identifica a própria felicidade no inatingível, no estar além do que se alcança, numa compreensão bastante simplificadora, podemos dizer que Lacan e seus discípulos veem o desejo num objeto se desfazer tão logo se tome posse desse objeto, portanto, a felicidade sempre se encontra no para-além-de. Neste sentido, a felicidade só é felicidade porque sempre poderei projetá-la para além do que se encontra em minha presença e sob o meu domínio.
Do mesmo modo, a ideia de escassez (inclusive da força de trabalho X para desenvolver a função Y) funciona na economia como modelo propulsor da classificação valorativa de recursos. A limitação pela possibilidade constante da falta molda a realidade mensurável dos bens. Na culinária, uma mistura de comida de diversos lugares, ao invés de nos remeter a todos esses lugares, impossibilita-nos de experimentar a sensação de pertencimento, ao mesmo tempo em que a pertença a algum lugar específico através de seus pratos típicos nos deixa longe simbólica e sensorialmente de outros.
Certa vez, numa conversa com um senhor, numa loja de roupas de um shopping aqui de Salvador, este me disse que passou a vida toda acreditando que para ser um cidadão de bem bastava pagar todas as suas contas corretamente, seguir a lei, conviver bem com seus vizinhos e viver de acordo com a moral social dominante, mas que naquele momento, aos setenta e dois anos de idade, enfim começava a enxergar que a moral, assim como a boa convivência no bairro, não é capaz de afagar alguém quando este vive uma penosa viuvez e longe dos seus filhos e netos. Da mesma forma, continuou, pagar as contas em dia e respeitar as leis não seriam sinônimos automáticos de justiça, no amplo sentido do termo, numa sociedade em que os pobres e as classes médias são muito mais explorados economicamente pela máquina fiscal do Leviatã do que os endinheirados. Moral da história, segundo aquele senhor de escassos cabelos brancos e já com muitas marcas da vida na face: se houvesse criado seus filhos com mais proximidade afetiva e não somente com copiosas lições de disciplina e civismo, talvez hoje estivesse vivendo uma velhice em que todos estariam unidos entre si e em que ele estivesse ali no centro, saboreando dias e noites no aconchego das expressões marotas de seus netinhos. Sua vida estava, naquele momento, mergulhada na ausência.
A falta de afetividade como elemento primordial da vida familiar se tornou uma velhice de frieza irreversível para aquele senhor. Ao final da conversa, ele me revelara que era militar da reserva. Para uma vida militar, disciplina, formalidade e pesada moralidade social são o presente, estando no plano do ausente e do desconhecido uma vida onde o amor, o carinho e a sensibilidade formam a base relacional. Um militar pode amar, ser carinhoso e sensível, e muitos o são, por óbvio, mas não são estas as características que estruturam simbolicamente sua presença no mundo, e quando elas aparecem, isso geralmente ocorre a reboque, como característica a posteriori. O amor liberta, flui livre, compreende e respira a paz. As regras militares são a ausência do amor, ao menos em seu estado mais pleno, sem necessariamente ser a presença do ódio. Como pretende preparar para a dureza da vida, ou ao menos se vende com essa imagem desde os tempos mais remotos, o militarismo é a representação do ausente no seio de uma vida de sorrisos, abraços e ternura, sem, contudo, tornar todos os militares frios, duros, desumanos.
Vida e morte, presença e ausência, como vemos, são opostos que se alimentam mutuamente. Algo só é porque não é de outra forma. Merleau-Ponty, grande pensador fenomenológico francês do século passado afirma, em seu impactante Fenomenologia da Percepção, que toda presença implica uma noção de ausência, assim como todo lado visível significa a exclusão de um lado invisível que, no entanto, encontra-se ali como ausente mas real e possibilitando a delimitação de tal elemento visível, presente, concreto. Mas se toda escolha é uma exclusão de algo que persiste como ausência, não seria muito melhor, por exemplo, entendermos as redes de todo tipo como elementos que integram o ausente e o presente a partir da possibilidade de afirmar a existência de um conjunto de coisas por ser a negação ou o oposto ausente e ao mesmo tempo constituinte dos elementos presentes naquela rede, ao invés de entendermos tal rede como somente relação de ligação e integração com elementos visíveis e dispersos a partir de múltiplos pontos? Isso não implicaria somente a admissão de elementos não ativos como algo que influi na rede, mas, para muito além disso, da inatividade como expressão de um estado de coisas estruturado pela díade presença/ausência, estar/não-estar, tais quais os elementos em estado de atividade.
No sentido acima exposto, mais que em qualquer outro, poderíamos, sim, falar em uma rede onipresente a estruturar uma infinidade de redes discerníveis, delimitadas, operacionais e objetivas. A grande rede seria, então, a própria ontologia do ser, da presença, enquanto suas múltiplas manifestações constituiriam as expressões ônticas moduladas e delimitadas pelas ausências.
Agora imaginemos que fosse possível assistir aos maiores jogadores da história do futebol participar de um jogo, o jogo dos jogos. Yashin, Benckenbauer, Cruyff, Pelé, Nilton Santos, Garrincha, Bobby Moore, Messi, Baresi, Zidane, Maradona, Romário, Buffon, Daniel Alves, Roberto Baggio, Lothar Matthaus, Cristiano Ronaldo, Van Basten, Xavi, Hagi, Iniesta e outros craques de suas respectivas gerações seriam escalados. Vamos desconsiderar o fato de que uma partida só comporta vinte e dois jogadores em campo e imaginá-los todos nesse jogo. A impossibilidade dessa partida se daria por vários fatores, obviamente os principais seriam o fato de muitos dos melhores jogadores do mundo já terem falecido e de as regras do futebol determinarem que uma partida só possa ocorrer com um número máximo de onze jogadores em cada um dos dois times.
Noutros termos, podemos imaginar a grandeza que seria tal jogo, entretanto jamais esse jogo poderia vir a ocorrer realmente, tanto pela ausência física de muitos dos melhores futebolistas do mundo quanto pela ausência de sentido de organização lógica de um jogo com dezenas de jogadores, muito além dos vinte e dois determinados pelas regras do esporte. Ainda assim, no plano do presente, da realidade visível e com a qual lidamos, a qual pressupõe sempre essa ausência contrafactual, mesmo sendo impossível haver a maior partida de todos os tempos, ela nunca deixa de ocorrer de tempos em tempos, na esfera da realidade concreta e em geral na forma dos grandes clássicos, ainda maiores, a depender do contexto, embora dentro dos limites do existir imediato, da tangibilidade.
É, se toda presença pressupõe uma ausência, tudo que é por ser presente e real aos nossos olhos e sentidos sempre carrega consigo a inscrição do que não é ou poderia ter sido mas por uma multiplicidade de fatores não foi e não está naquele momento diante de nós, como nos mostram as alegorias acima. Mas há um meio por excelência de penetrar mais fundo até o centro desse drama existencial maior, num movimento libertador, de modo que possamos amenizar nossas angústias, e ele se chama esfera artística.
À medida que a arte, seja o cinema, a poesia, a música ou qualquer outra de suas modalidades, tem a capacidade de tecer esse drama com uma linha de possibilidades infinitas, ela, arte, é de longe o mais formidável caminho para transcender a finitude da vida, como afirmava Nietzsche, o meio supremo de perceber em cada poro da realidade imediata a inscrição de cada ausência correlata. Não à toa, uma fala metalinguística de Everardo, personagem interpretado por Matheus Nachtergaele em Baixio das Bestas, filme de 2007 do brilhante cineasta pernambucano Cláudio Assis, estampa tal condição vantajosa desse reino da magia em relação à vida ordinária: “Você sabe por que eu gosto do cinema?”, pergunta Everardo ao telespectador, num brilhante recorte fílmico, emendando a resposta logo em seguida, com uma expressão facial um tanto quanto insana: “É porque no cinema a gente pode tudo!” Concordo plenamente, Everardo!
Link da imagem: https://voupassar.club/paisagem-natural/
Referências
BAIXIO das Bestas. Direção de Cláudio Assis. Pernambuco: Imovision, 2007. 1 DVD (80 min.).
VELOSO, Caetano. Os 60 anos de Caetano Veloso. [Entrevista concedida ao] Programa Fantástico. Globo, Rio de Janeiro, 4 ago. 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Bragança Paulista, SP: Petrópolis – Vozes – Editora Universitária São Francisco, 2006.
LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 4: a relação de objeto. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1995.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da Tragédia. Tradução de Antônio Carlos Braga, São Paulo, SP: Escala, 2011.