“Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos”. Jorge Luiz Borges.
Corpus Mundi é o primeiro solo da atriz baiana, radicada na Alemanha, Bárbara Luci Carvalho, integrante do grupo alemão Antagon Theater Aktion. A performance é concebida, coreografada e encenada pela própria atriz que expressa em cena as memórias sobre seu corpo e sua herança feminina e negra. A narrativa, de caráter biográfico, mescla em seu discurso temas que transcendem os limites geográficos, estéticos, indo além das experiências privadas e dos compromissos públicos.
O solo representa a história da atriz e sua relação com o mundo a partir de sua atuação artística. Expressa a relação dela com o teatro, sua ida para a Alemanha, sua luta para manter firme as suas raízes mesmo sendo agora cidadã do mundo e estando na Europa.
É sempre bom lembrar aos leitores que meus textos sobre os espetáculos aos quais sou chamado a escrever são impressões e análises pessoais, obviamente baseados nos fatos e indícios que as obras sinalizam.
Quando o público teve acesso ao espaço, a atriz já se encontrava instalada em cena, em plena concentração. Ela mirava o horizonte do alto da porta e já demonstrava ver além, o que no meu ponto de vista, já foi uma pista do que viria a seguir. Ela se coloca por detrás da porta numa altura que a dispõe acima da mesma. Ela vê do alto e se aventura na passagem, na fronteira. Eis o primeiro indício que se apresentou. Começa o ritual ao entoar um cântico que parece ser iorubá e finalizá-lo com um grito que se reverbera como hino guerreiro.
Ela utiliza técnicas do teatro físico para compor sua performance (principal técnica utilizada pelo grupo alemão Antagon na construção de seus espetáculos). A presença das pernas de pau, da expressão corporal e da dança, o uso de objetos de cena bastante simbólicos. O casaco vermelho, uma mala vermelha com um facão dentro, um pequeno baú contendo seu passaporte e pó de terra marrom dentro (ela faz um círculo jogando o pó no chão próximo do local onde vai deixando os objetos já visitados).
Do lado esquerdo a mala. Do direito um tecido preto no chão (depois sabemos que é um figurino com uma máscara africana). O cenário, concebido por Bernhard Bub e Bárbara Luci Carvalho, é composto também por uma porta de madeira, disposta à direita do palco que simboliza a passagem para novos mundos, a fronteira (a relação da realidade com a arte, o que se encontra atrás da porta, a coxia, o mistério da vida e da arte, o inesperado).
Em seguida ela se revela completamente em cena e performa com pernas de pau. Projeta-se num telão imagens do rosto da atriz ao natural sem maquiagem. Parece falar espontaneamente, sorri, às vezes dar uma gargalhada, gesticula, abre e fecha a boca, mostra a língua. Ela interage com a imagem da projeção. Em outros momentos aparece no telão fotos em preto e branco da família dela e do grupo Antagon.
O espetáculo é um ritual que enobrece e entroniza o papel do teatro na vida da artista além de ser uma homenagem às suas raízes ancestrais e sua ligação com a linguagem teatral, hoje mesclada com os aprendizados que teve em sua formação como atriz, ainda aqui no Brasil e com sua bagagem cultural adquirida nas andanças ao redor do mundo. O que se vê em cena é a constatação de que, mesmo estando fora da Bahia, a Bahia está sempre no corpo da atriz aonde quer que ela vá. Seu corpo é sua identidade e o instrumento mais precioso de sua arte e por onde quer que vá, suas raízes estarão presentes em sua essência enquanto mulher negra e baiana, enquanto artista do palco. Acredito que isso fortaleça e muito sua verdade, sua essência e sua missão na arte.
O solo é dividido em momentos com poucas interferências verbais (quando ocorrem são partes de depoimentos da própria atriz contando suas memórias) e muita expressão corporal. A música, composta por Ruben Wielsch e Bernhard Bub, pontua precisamente bem as transições de cenas e reforça o aspecto ritual do trabalho.
A cena da caixa de madeira que ela traz representa suas memórias e sua herança cultural, pois o tesouro que se revela é o passaporte que a levou a atravessar as fronteiras geográficas e também o pó da terra que ela espalha em volta de si mesma formando um círculo, a representação do globo terrestre. A terra dá ideia de ancestralidade. Isso remete a suas próprias origens enquanto ser humano, e nos faz entender como o sentimento de pertencimento se revela intenso.
Um pertencer a si mesma enquanto mulher, mas além disso um pertencer ao mundo. O pó da terra que também nos representa, já que “do pó viemos e ao pó voltaremos”, para fazer uma citação bíblica, é ressignificado quando ela espalha em volta de si e o esfrega na própria pele: nas mãos, no rosto, nos braços, o que intensifica a relação do corpo como um elemento constituinte dessa terra.
Na cena da mala ela nos conta a sua saga quando partiu para a Alemanha. Há um texto em off com a própria voz da atriz narrando sua história. O trecho que me chamou a atenção foi quando ela afirma que sua mãe, ao saber da sua partida, rasga o passaporte dela na tentativa de impedi-la de ir. Há um número de performance com a mala e em seguida ela retira da mala um facão com o qual também performa com uma dança ao orixá Ogum que simboliza um guerreiro, símbolo das lutas e conquistas, considerado o primeiro Orixá a descer do Orun (o céu) para o Ayé (a Terra). Uma referência que representa a própria trajetória de desbravamentos e realizações da atriz enquanto mulher negra e artista.
A cena com a máscara africana é bem ritualística. Inicialmente vemos apenas um pano preto no chão que posteriormente se revela como a representação do próprio teatro. O casaco vermelho com o qual a atriz inicia a performance aparece no final da mesma compondo com outros objetos cênicos que foram visitados durante a ação cênica: a máscara africana se apresenta como um personagem que toma o lugar da atriz. A leitura que posso fazer é que a arte da representação em seu jogo mágico e lúdico é a protagonista deste solo, a arte que se expressa no corpo da atriz expande-se e se condiciona como elemento de impulso vital a nos mostrar que vida e arte se imbricam.
A cena que precede o final da peça é um momento instigante quando Bárbara convida Bernhard Bub para juntos dialogarem musicalmente. Ela toca um atabaque e ele um cajón. Há um diálogo muito rico e interessante. Um diálogo intercultural. Uma mensagem muito precisa de que as culturas podem sim se misturar e se comunicar. A cena reitera a mensagem de que é possível a interação entre os povos. As barreiras não existem realmente, são constructos criados por pessoas eivadas de preconceito. A arte é potente e universal. E o que une tudo isso é o amor (me referindo diretamente ao casal, já que eles são parceiros na vida e na arte, mas também e, principalmente ao que nos constitui enquanto seres humanos).
O corpo da atriz traz a vivacidade das suas próprias memórias, a força e a verdade expressando sua identidade e subjetividade, trazendo as marcas e cicatrizes das lutas que vivenciou para chegar até aqui. Ela faz a travessia pelo planeta de sua própria história e nos conta, nas passagens e paradas o que encontrou, o que criou, o que a fortaleceu sem esquecer de lembrar de suas próprias raízes e de que a vida se movimenta em compasso com a arte e sempre vale a pena fazer a viagem.
Ficha Técnica:
Concepção, coreografia e performance: Barbara Luci Carvalho Edição de vídeo: Jorge Bascuñan Música: Ruben Wielsch e Bernhard Bub Cenáro: Bernhard Bub e Bárbara Luci Carvalho Agradecimentos a Luciana Martuchelli e Luciana Fazan
Imagem: Jorge Bascuñan