Durante a segunda metade de 2019 e esse início de 2020 falamos aqui no soteroprosa sobre alguns dos indicados ao Oscar 2020. Alguns deles foram: História de um Casamento, Parasita e Coringa, esse último inclusive rendeu um evento do nosso site aqui em Salvador. Acredito que ainda falaremos sobre os filmes indicados, mesmo após o veredito final da premiação. Afinal, o audiovisual não se perde.
A arte cinematográfica não se deteriora com o tempo. Hoje com o digital e as possibilidades de restauração de imagem e som, é praticamente impossível perder um objeto cinematográfico. Talvez alguns filmes não consigam envelhecer bem devido a forma ou o conteúdo, mas não por conta de sua mídia. Entretanto, esse processo de envelhecimento ético e estético não é algo que podemos dizer desse Oscar. Os filmes indicados abarcam algumas temáticas que são universais, mesmo que dentro do nicho em que fazem parte.
Parasita (Bong Joon-ho, 2019) fala do capitalismo predador de uma maneira irônica e realista. Adoráveis Mulheres (Greta Gerwig, 2019) aborda o empoderamento feminino e o feminismo. História de um Casamento (Noah Baumbach, 2019) nos leva para uma trama inédita do fim de um relacionamento abusivo. Coringa (Todd Phillips, 2019) nos questiona sobre os problemas sociais e a loucura produzida pelo sistema. O Irlandês (Martin Scorsese, 2019) nos transporta para a atmosfera da máfia e das corrupções que envolvem a política. 1917 (Sam Mendes, 2020) nos coloca numa imersão da guerra. Era uma vez... em Hollywood (Quentin Tarantino, 2019) satiriza um crime hediondo que repercutiu em Los Angeles. Jojo Rabbit (Taika Waititi, 2020) nos coloca na Alemanha nazista sob o olhar de uma criança. E Ford versus Ferrari (James Mangold, 2019) nos mostra as dificuldades de desbancar uma empresa gigante do automobilismo.
Diante desse cenário, é evidente que esse Oscar está empolgante até para quem não acompanha a cerimônia. Também é plausível falar que só de estar nessa lista, os filmes são vitoriosos e merecedores de aplausos. O Oscar ainda é um lugar a ser valorizado. Por esse aspecto é que nós brasileiros deveríamos estar orgulhosos já que mais uma vez estamos a um passo de ganhar a estatueta, a última oportunidade que tivemos foi a exatamente vinte anos atrás com o filme Central do Brasil (1998), de Walter Salles.
Em 1999, Central do Brasil estava presente na categoria melhor filme estrangeiro e melhor atriz, nessa última competindo de igual para igual com atrizes estadunidenses: Fernanda Montenegro estava concorrendo com Maryl Streep, mas quem levou mesmo a estatueta foi a Gwyneth Paltrow. Fato é que essa cerimonia de 1999 foi para o Brasil um ato anticolonial, estávamos presentes no local do colonizador, mostrando a nossa identidade sem complexos de vira-lata. Como exemplo disso posso dizer que a história se repetiu em 2019 com o mexicano Roma, de Alfonso Cuaron, o qual concorreu a melhor filme e a melhor filme estrangeiro, levando a estatueta na segunda categoria citada. Esse ano veio a dobradinha com o sul coreano Parasita, de Bong Joon-ho, concorrendo também a melhor filme e melhor filme estrangeiro.
Mas e o Brasil nessa história? Vinte anos depois de Walter Salles temos o Democracia em Vertigem (2018), de Petra Costa, como representante do maior país sul-americano, na categoria melhor documentário. Concorreremos com o filme estadunidense Indústria Americana (Julia Reichert, Steven Bognar, 2019) que também é muito caro para pensar na tomada da China como o novo império econômico mundial. Além de dois documentários sobre a guerra da síria The Cave (Firas Fayyad, 2019) e For Sama (Waad al-Kateab, Edward Watts, 2019) e; um documentário sobre apicultura que nos traz uma mensagem de equilíbrio com a natureza: Honeyland (Ljubomir Stefanov, Tamara Kotevska, 2019).
Independente dos resultados da premiação. Petra Costa já é uma vitoriosa. Estará lá representando as poucas diretoras indicadas ao Oscar esse ano. Assumindo a identidade de uma diretora Sul-Americana, de um país marginalizado que é o Brasil. Além de claro, denunciar os fatos antidemocráticos que ocorreram no país, algo que muito tem incomodado o governo Bolsonaro. Afinal, Petra, em seu documentário, evidencia as mudanças positivas que o governo do PT conquistou para o Brasil, entretanto, não deixa de fazer uma autocritica aos fatos negativos que ocorreram no governo Lula, à exemplo do mensalão, mas corrobora com a perspectiva do golpe contra Dilma e da prisão sem provas de Lula.
Por esses motivos é que os apoiadores do governo atual e o próprio governo tem desmerecido ou apagado a presença de Petra Costa no Oscar 2020. A diretora inclusive foi desmoralizada pelo apresentador da Rede Globo, Pedro Bial, segundo ele: “É uma menina querendo dizer para a mamãe dela que ela fez tudo direitinho.” Nem vou entrar no mérito de que o termo menina e mamãe se enquadram em um discurso de cunho machista para diminuir a diretora. Depois da repercussão do comentário, o apresentador da Globo – emissora que demorou bastante para falar sobre o DOC)- pediu paz já que foi linchado virtualmente.
O discurso de Bial, apesar de problemático, tenta ser associativo com o filme porque Petra coloca ela mesma e a família (em especial a mãe) na história do documentário, algo que fez no seu primeiro longa documental Elena (2012) que conta de uma maneira leve, pulsante e lírica a história de sua irmã que se suicidou. Esses adjetivos também podem ser aplicados para a nossa tragédia brasileira sendo contada por Petra.
Se colocar na história, além de já ser uma assinatura da Petra Costa, há justificativas plausíveis. Ela faz parte da história do Brasil (assim como milhares de brasileiros da contemporaneidade) e é preciso não esquecer da nossa história. Foi a neutralidade, o não se colocar, que definiu o nosso destino por pelo menos quatro anos. A prova de ficar em cima do muro foi a quantidade maior de votos nulos do que no atual presidente. Hoje estamos sofrendo as consequências disso, desde a instabilidade dos ministérios à censura da própria arte e os cortes na educação e na saúde.
Nesse contexto, é possível dizer que o Oscar para o Brasil, ainda que seja só uma esperança, ele não vem apenas com a estatueta, mas com a personificação de uma bruta sacudidela nos ânimos, fazendo no mínimo repensar a repercussão dessa breve história brasileira e as consequências que temos e teremos. Petra Costa nos deu uma pequena dose de realidade em duas horas de filme, doa a quem doer. E a repercussão só confirma a retórica da narrativa, credibilizando o discurso dessa produção brasileira, em especial da diretora.
Fonte: Colagem com Jacqueline Gama