A religião institucionalizada apresenta a imagem de Jesus como um jovem europeu. Desde criança temos a figura de Cristo associada a um homem branco de olhos claros e longos cabelos lisos. Os filmes também o retratam assim. O imaginário coletivo é eurocêntrico até quando se trata de retratar o filho de Deus. No entanto, é pouco verossímil que em pleno Oriente Médio Jesus tenha nascido branco e de olhos azuis. A imagem que temos de Cristo é uma quimera, fruto da colonização da nossa mentalidade.
A escola de samba Mangueira levou à avenida no carnaval de 2020 um samba-enredo que apresenta uma figura de Jesus muito diferente da que foi construída a partir do imaginário cristão europeu. O sambódromo viu desfilar o Jesus da gente, várias versões do messias, todas fazendo referência a pessoas marginalizadas e excluídas socialmente. Jesus renasceu na avenida na figura do negro que sofre racismo, da mulher que é violentada, do favelado que apanha da polícia, do transexual que é preterido e do LGBTI+ que é assassinado. Foi possível contemplar um Cristo carregando os fardos daqueles que em virtude de tanta violência e degradação perderam as forças.
A Mangueira perguntou onde está o filho de Deus quando uma criança é alvejada e morta por uma bala perdida, quando um homem negro é assassinado com 80 tiros, quando um homossexual é agredido, quando uma mulher é vítima de feminicídio. A mensagem do samba-enredo nos leva a crer que Jesus está em cada ser oprimido, em cada vida que se esvai e em cada futuro interrompido. Nos evangelhos também vemos um Jesus que senta à mesa com ladrões e prostitutas, que se aproxima de mendigos e dorme com marginalizados, os textos bíblicos mostram um Messias em conflito com os religiosos da época, quebrando as barracas dos vendilhões na porta do templo e chamando outros tantos de raça de víboras.
A escola de samba enfiou o dedo na cara do fundamentalismo religioso e expôs todo o seu lado preconceituoso, racista, homofóbico, transfóbico e sanguinário. “Não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão”, o refrão do samba-enredo nos apresenta um Jesus mais fidedigno às escrituras e se opõe nitidamente à cultura de ódio protagonizada por Bolsonaro e seus seguidores.
Quando uma escola de samba diz mais sobre Jesus do que os próprios religiosos é necessário que as igrejas se calem um pouco a fim de refletir sobre as próprias crenças preconceituosas – quanto ódio há impregnado nessas ideias? Deus não comunga com o ódio, preconceito e discriminação. O Jesus da Mangueira foi duramente criticado por líderes religiosos porque ele rompe com a ideia cristalizada/elitizada que temos do filho de Deus, o samba-enredo incomoda porque questiona o estereótipo apresentado como verdade única, a imagem do Cristo transmitida pela escola de samba é tão odiada por reivindicar o direito de construir no imaginário a ideia de um Deus dos oprimidos.
Referência da imagem:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2020/noticia/2020/02/24/mangueira-busca-bicampeonato-com-releitura-critica-da-vida-de-um-jesus-cristo-nascido-no-morro.ghtml