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Antonio Danilo Pereira Santana

Uma Breve Reflexão Sobre Ruptura Institucional



Poderia a política ser tão esvaziada de seus pilares essenciais a ponto de transformar-se noutra coisa que não mais ela própria, política? Em plena era em que a grande imprensa e a opinião pública em geral reproduzem a imagem da democracia como um ente imune ao mundo ao redor, como num perigoso pedestal, naturalizando-a, poderia um chefe de Estado, através da quebra total do decoro do cargo e de um arsenal verborrágico horripilante, fraturar a lógica da funcionalidade estabilizadora da política? Seria possível que esse mesmo governante viesse a ser a encarnação da antessala da barbárie operando no interior do arcabouço racional-legal, ainda que de maneira deformada, isto é, que esse arcabouço não fosse capaz de frear alguém assim?


Por a democracia pretender-se vigorosa evolução ou aperfeiçoamento da política na direção de um governo do povo e para o povo, agindo, desta maneira, sempre no sentido de irradiar a ideologia da capacidade inata a esse mesmo povo de escolher os seres morais mais adequados para governá-lo, enfim, a natureza deste regime não levaria, mais cedo ou mais tarde, ao fortalecimento entre as massas do nome de algum monstro sempre pronto a eclodir o ovo da serpente totalitária sob a lógica isonômica de concorrência pela administração do Estado?


As perguntas acima têm me tomado de assalto horas angustiantes após notícias envolvendo o nosso atual obtuso presidente da República Federativa do Brasil. E, infelizmente, tais notícias têm sido constantes. A cada dia, as falas do presidente ultrapassam um limite que parecia não poder ser ultrapassado. E, dia após dia, o país parece submergir num naufrágio civilizatório impensável há pouco tempo. Talvez a grande imprensa tenha mais culpa no cartório do que somente ter ajudado a eleger um candidato protofascista como Bolsonaro, ao ter fomentado o antipetismo, mas também ao vir sedimentando, desde 1988, o discurso da solidez crescente de nossas instituições, não sem o aval quase consensual da maioria dos maiores cientistas políticos brasileiros.


Não estou aqui afirmando que esses intelectuais erraram no diagnóstico da solidez das nossas instituições, longe disso, pois são indubitavelmente homens e mulheres extremamente criteriosos e competentes nos seus estudos. A questão, a meu ver, é outra, ou seja, é a de saber se instituições sólidas são a garantia para frear a quem de mais podre o regime democrático pode empoderar, justamente um espírito antidemocrático e ressentido como o Messias que, ao contrário do outro, o hebreu, nunca disse ter vindo para salvar almas, mas, ao contrário, sempre fez questão de deixar explícito que sua missão seria a de tragar a própria possibilidade de construção de uma grande alma ética e virtuosa do Estado-nação brasileiro para o quinto dos infernos da barbárie antipolítica.


Ter um arcabouço jurídico-político funcionando com regularidade não significa possuir uma estrutura de imunização do corpo nacional diante de pragas perigosas como o bolsonarismo, este que nada mais é que um protofascismo ruralista neopentecostal, versão esdrúxula do tipo puxadinho brasileiro da não menos esdrúxula direita antiglobalista mundial encabeçada por figuras como Steve Bannon, Matteo Salvini e Donald Trump. A prova de que funcionalidade não é força é que derrubamos uma chefa de Estado usando para isso uma ampliação surreal do conceito de crime de responsabilidade, encaixando infração fiscal, algo não elencado nos tipos penais aptos a impedir um presidente, no campo alcançado por essa jurisdição. Em outras palavras, o rito se desenvolveu por completo e a presidente caiu, pois não é próprio dos ritos questionarem os conteúdos que lhes dão a condição de possibilidade, mas simplesmente reproduzirem-se, mesmo que sob uma estrutura ficcional a lhes anteceder.


Fala-se aqui e ali que Bolsonaro e a bolha de ressentidos que lhe cerca vez ou outra fazem balão de ensaio de uma ruptura institucional. Eu não diria isso, mas que a própria razão de ser de seu governo é um exercício constante da ruptura em si. Sendo assim, não se trataria de o governo bolsonarista testar recorrentemente os limites da democracia, tensionar suas estruturas de contenção do autoritarismo, mas, para além disso, de operar autoritariamente e desde já extrapolando constantemente tais limites.


Ora, se fosse de outro modo que não um constante exercício autoritário, como seria possível ao presidente perpetrar ações como a de blindagem do seu primogênito diante das investigações acerca das suspeitas de ilegalidades por ele praticadas, quando parlamentar no Rio de Janeiro, para tal interferindo arbitrariamente nas estruturas do próprio Estado, ao esvaziar o poder de determinados órgãos, às vezes deslocando-os, assim como fazendo uso do aparato policial para intimidar adversários políticos e pessoas e grupos que se posicionam contra seu projeto de poder? Se ações como essas e outras de nível semelhante não significam agir para além dos limites da democracia, o que então seria agir deste modo?


Entre os seus sinais mais relevantes, a história nos mostra que todos os projetos autoritários apresentam o recurso frequente à mobilização da população a partir do forjar de um sentimento de unidade nacional em torno da necessidade de substituição da situação do presente, sempre atribuída a um grupo, seja ele um partido político, uma raça-etnia ou alguma parcela específica da população, por outra que signifique a verdadeira condição na qual essa população merece estar, uma salvação dos males causados por supostos algozes naturais do povo. Esse movimento se dá, de uma maneira geral, a partir da figura de um líder, mas também pode ocorrer através de todo um grupo pretensamente dono da verdade e da capacidade de operar a salvação nacional.


Outro sinal de alerta seria o esforço constante, da parte do governo que pretende implantar esse projeto autoritário de poder, no sentido de gerar um clima de desconfiança permanente quanto às notícias veiculadas pelos meios de comunicação, o que se ancora na lógica de deslegitimação dos fatos com vistas à legitimação da narrativa que melhor convém ao regime. Por último, vale também dar destaque a outro importante sinal desse tipo de projeto, qual seja o da materialização do campo das práticas autoritárias propriamente ditas, como a utilização dos aparatos estatais legais de modo ilegal, embora na maioria das vezes ancorada em ritos procedimentais, para deste modo soar como legal, numa lógica de fortalecimento do regime e de aniquilamento da capacidade de resistência dos seus adversários. Ou alguém acredita, de fato, na existência de projeto autoritário de poder que quando à frente do Estado se limite à retórica autoritária?


Eu vou mais além, no tocante ao contexto brasileiro atual. Por aqui, independentemente de ter almejado a substituição no poder do projeto de centro-esquerda do PT por outro ligado a partidos da direita e da centro-direita tradicional, a exemplo do DEM e do PSDB, e que as circunstâncias tenham levado ao poder Bolsonaro, representante máximo da extrema-direita nacional, enfim, a Operação Lava Jato já vinha funcionando como exercício das práticas autoritárias que vieram a ter o seu continuum no governo em exercício, governo este que a operação diretamente ajudou a eleger. Os abusos de todo tipo cometidos pela operação, tais quais os atos aberrantes de Jair Bolsonaro à frente da presidência, não seriam balões de ensaio de uma ruptura institucional, e, sim, desde sempre, a atuação para além dos limites do Estado democrático de direito.


Como reflexão final, proponho a seguinte analogia: durante o processo da Revolução Russa, Lenin, seu principal líder, descreveu com formidável eloquência um fenômeno político conhecido que ficara como duplo poder, o qual consistiu, nos anos que precederam 1917, no estabelecimento de um poder político-administrativo ligado às forças burguesas e outro, à classe trabalhadora, este último intitulado soviético (em russo soviet, que significa conselho). Isto é, por mais que a Rússia não pudesse ser considerada uma democracia, havia toda uma estrutura governamental legitimada entre a população, no sentido weberiano, que àquele momento passara a dividir a condução do país com uma estrutura informal e que se colocava em posição de sua adversária na busca pela ocupação absoluta do poder do Estado russo. Ou seja, independente de que se reconheça ou não o caráter autoritário que a Revolução Russa tenha vindo a gerar, após a posterior implantação da União Soviética pelos revolucionários, em 1922 – e aqui entram as paixões, conforme se admire ou não essa experiência –, o projeto de poder dos revolucionários organizados em sovietes não se deu por dentro da máquina estatal desde o início, mas, ao contrário, estruturou-se paralelamente às arenas estatais legítimas e teve sua concretização a partir da tomada do poder.


Guardadas as devidas e imensas diferenças entre a Rússia revolucionária do início do século XX e o Brasil atual, país do lavajatismo e do bolsonarismo, fenômenos políticos que sempre se desenvolveram de modo imbricado, mesmo que esta não tenha sido a intenção inicial da tal da república (republiqueta) de Curitiba, não há que se falar em ter havido por aqui em algum momento a existência de um duplo poder, mas, isto sim, uma crescente autoritária a partir do próprio seio do poder legítimo e através de práticas legitimadas pelos procedimentos ritualísticos, embora em grande parte eivadas de erros, manipulações e distorções graves do arcabouço jurídico-legal e, no limite, do próprio Estado de direito.


Em síntese, instituições consolidadas não são um sinônimo de freio ao autoritarismo, assim como democracia não é sinônimo de garantia da ascensão ao poder dos governantes mais qualificados, embora , neste último caso, as alternativas a elas tendam a levar a situações sociais piores e a um Estado com braço ainda mais pesado sobre as classes sociais despossuídas e os indivíduos mais marginalizados. E esse beco tem saída? Bom, a meu ver, esta não seria bem uma pergunta a ser respondida, mas uma interrogação voltada a gerar a capacidade constante de indignação com os absurdos e injustiças produzidos na democracia, este que é o pior dos regimes, exceto todos os outros, como diria o controverso democrata Wiston Churchill, de quem absolutamente não sou um admirador, mas que, reconheço, produziu belas frases, ainda que, na prática, a história tenha revelado em tal figura o comando de ações políticas obscuras desprezíveis e nada democráticas em nome da democracia da ilha europeia chuvosa por ele governada, naqueles anos belicosos.



Referência


LENIN, V. I. O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o

papel do proletariado na revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.



Referência da Imagem:


http://impacto.mx/opinion/nosotros-y-la-politica/

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