
Nossa rotina mudou: diariamente acordamos e, ao “abrirmos” o Instagram, vemos cada vez mais no feed ou story de contatos, notificações sobre o corona vírus. Digo, por isso, que o Insta. se tornou o que chamo de comunicador (BRITO, 2019; 2020), um mediador, um meio de transporte em que a informação circula “modelando/formatando” nossos hábitos. Quanto mais cliques, mais notícias semelhantes sobre Covid-19 nos chegam.
Mas o que essas coisas ensinam para as ciências humanas e sociais e, mais ainda, para defensores/as da “ciência clássica”, moderna, que se opôs à religião e à crença ao mesmo tempo em que acreditava cega e destrutivamente no desenvolvimento da modernidade europeia e do capitalismo? Além disso, como cientistas sociais podem, finalmente, pensarem em dialogar com a sociedade atual sem manter aquela arrogância intelectual típica?
De antemão, digo: as ciências sociais têm que ter utilidade pública! Porém, utilidade não pode ser considerada nos mesmos termos que, por exemplo, impactos socioeconômicos para a população ou políticas públicas diretas decorrentes de pesquisas em ciências sociais e humanas, como desejam certos chefes de governo ou de ministérios, muito afeitos à lógica mercantil e utilitarista da ideologia liberal anglo-americana responsável pela mudança no pensamento científico moderno em instituições de Educação Formal (MERTON, 2013).
Bom, meu argumento é que aprenderemos a separar ciência da política, ao menos nas etapas em que essas coisas acontecem e, assim, entenderemos que “objetividade” (àquela ideia de que ciência é igual à verdade e, portanto, não sofre interferência ou “contaminação” dos valores e interesses humanos) não anula o vinculo com interesses, mas também não significa comprometimento da própria validade dos resultados científicos. Dito de outra forma: se uma pesquisadora descobrir que o Covid-19 passa da gestante para o feto durante a gravidez – transmissão vertical (algo não confirmado ainda) -, ela foi objetiva? Claro que sim! Depois disso, todavia, sua ação-conhecimento será vinculada a ação-política (quais medidas o governo tomará para tentar evitar esse tipo de transmissão? Lembremos que no caso do Zika, o governo pedia que se evitasse a gravidez).
Existe uma tendência nas ciências sociais, de se criticar a objetividade como refém de interesses políticos velados (“você está sempre posicionado, se não contra, a favor do opressor”). Para quem pesquisou os chamados Estudos Sociais sobre Ciência e Tecnologia – década de 1970 e 1980 na Europa -, esse tipo de argumento é apressado demais, pois ele mistura o que é produção de conhecimento objetivo com interesses que estão ligados à produção desse conhecimento. O critério de valor das ciências sociais críticas, como tenho defendido (BRITO, 2020), é chamado de posicionamento: uma incorporação do posicionamento político em voga na sociedade para lidar com a própria produção do conhecimento acadêmico.
Com o posicionamento, todavia, podemos jogar fora o bebê com a água do banho, como se diz popularmente (menos, bicha!). Ser objetivo é uma etapa do processo. O outro lado é vincular o conhecimento produzido aos interesses “sociais” que, de um lado, podem ter servido para financiá-lo (fomento à pesquisa com a liberação de verba do governo); e, de outro, podem servir para mudar o comportamento e hábitos das pessoas por meio dos comunicadores, ao se difundir o conhecimento científico e as formas de prevenção de determinadas doenças e vírus.
A história da ciência no Brasil, segundo a Fiocruz¹, se confunde com a história da Saúde. É interessante notar que a relação entre objetividade do conhecimento (em Saúde) e interesses de governo (Política) tem sido fundamental para lidar com epidemias. Como podemos, então, continuar diminuindo a contribuição do conhecimento científico acusando, nós das ciências sociais, tal conhecimento de estar sempre “posicionado politicamente”? Estar posicionado é só outro nome para está servindo a alguém... a questão, portanto, não é questionar a objetividade ou não, mas sim descobrir os modos de, politicamente, fazermos conscientemente o processo de competir por esse espaço de e a quem deve-se servir. É aqui, aliás, que a agroecologia e a agricultura familiar têm dado uma lição na agronomia tradicional, ligada (quase) sempre aos interesses do agronegócio (BRITO, 2016).
Por isso, defensores e defensoras da Ciência e do Posicionamento Político, não reduzam a ciência à política, nem o inverso. Se faz ciência com política; assim como se faz política com ciência. Até o budismo (ver a Monja Cohen) e as diversas terapias “alternativas” se fazem com a Ciência. Por que só nas ciências sociais a objetividade do conhecimento cientifico precisa ser colorida com cores de partidos políticos – nós contra eles (aliás, o governo atual percebeu isso perfeitamente e tem usado essa percepção para chegar aonde chegou: a pós-verdade)?
1: Conferir Histórico da Fiocruz em seu portal institucional.
Referências
BRITO, Gabriel Ferreira de. Agrotóxicos ou defensivos agrícolas? Um estudo sobre a posição de agrônomos/as e de cientistas sociais sobre o uso de agrotóxicos. 2016. 60 f. Trabalho de Conclusão de Curso (monografia de Ciências Sociais) – Universidade Federal Rural de Pernambuco.
______. Como fatos científicos (não) se tornam fatos sociais: uma pesquisa sobre a participação da Fiocruz no combate à epidemia de vírus Zika no Brasil. In: SCOTT, Perry; LIRA, Luciana; MATOS, Silvana. Práticas sociais no epicentro da epidemia do Zika. Recife, Editora UFPE, 2020 (Prelo). Coleção: Gênero e Políticas Públicas, 5.
______. Zika vírus: uma pesquisa sobre a participação da Fundação Oswaldo Cruz no combate à epidemia de Zika. 2019. (Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Sociologia) 109 f . UFPE, Recife.
MERTON, Robert K. Puritanismo, pietismo e ciência. Em: MARCOVICH, Anne. e SHINN, Terry. Ensaios de sociologia da ciência/Robert K. Merton. Tradução de Sylvia Gemignani e Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia. Editora 34, 2013.
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