top of page

POR QUE A PSICANÁLISE É A ÚNICA CAPAZ DE INTERPRETAR O CORONAVIRUS?

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho


Tudo parecia sólido até pouco tempo atrás, como se a certeza do amanhã fosse uma garantia óbvia, um sonho concreto. É curioso como o cotidiano carrega esse traço de ilusão de ótica, esse sentimento de que tudo ao nosso redor funciona muito bem, o tempo todo. Quando algum problema brota do chão, é sempre visto como algo externo, pontual, quase um inimigo que colononiza nossa harmonia intocada. Seguindo um percurso um pouco fenomenologico, essa confiança extrema de que existe um solo firme sob nossos pés, essa fé intuitiva de que tudo permanece no lugar, recebeu o nome de atitude natural, ou seja, a certeza pré-reflexiva (não racional) de que existe lá fora um mundo sólido apenas aguardando minha inocente participação. Apesar dessa ingenuidade, e de toda fé envolvida, ainda assim nada impede que esse mesmo mundo nos invada, trazendo consigo alguns instantes de ruptura, muitas vezes frustrações dispersas ou angústias impossíveis de nomear. Quando isso acontece, mesmo que por um breve momento, é possível sentir um pouco o cheiro do aroma instável que escorre pelas brechas daquilo que chamam de SOCIEDADE. Embora tenha um papel pragmático, esse substantivo não ajuda nem um pouco, principalmente porque oferece um retrato congelado e linear das coisas, como se SOCIEDADE fosse algum organismo vivo que flutua sobre nossas cabeças. Mas, por outro lado, o que percebemos bem, ao menos quando se olha com calma, é a existencia de um vácuo atravessando cada centímetro do nosso cotidiano, uma lacuna que persiste em cada palavra dita, em cada gesto feito.


É quase irônico que em um mundo tão barulhento, tão cheio de opiniões, crenças e discursos, todos tenham se curvado diante de uma única palavra: CORONAVIRUS. Por um breve momento, ainda que depois cada um siga por um caminho diferente, todos foram tomados por um mesmo silêncio, por uma única sensação indefinida, confusa e frustrante. Ainda que por alguns segundos, ou até mesmo horas, experimentamos um pouco de uma ética universal, uma ética que conecta não formas de linguagem, mas modalidades de corpo. Apesar disso, esse instante de silêncio não durou muito, sendo substituído logo em seguida por toneladas de interpretações, o que chamo de MALABARISMO VERBAL.


Numa tentativa de preencher o buraco deixado pelo vírus, várias abordagens colonizaram a linguagem em busca de um pouco de sombra e água fresca, um espaço confortável e familiar: 1) A RELIGIÃO afirma que tudo é um castigo ou teste divino. 2) Já as CIÊNCIAS SOCIAIS acreditam que é um sinal de uma crise no capitalismo ou um indício do fracasso de nossas instituições políticas. 3) A FILOSOFIA segue por abordagens existenciais, temperadas com algumas gotas fenomenologicas, muitas vezes envolvendo nosso desamparo diante de tudo ao redor. E, por fim, mas não menos importante, 4) O SENSO COMUM com suas teorias conspiratórias, carregadas de traços paranoicos. Apesar das diferentes interpretações, e até mesmo da criatividade envolvida em cada uma delas, algo se mantém: a INTERPRETAÇÃO. Em outras palavras, existe sempre o desejo de nomear e, principalmente, converter o sentimento de uma angústia dispersa em algo conhecido, previsível. Todos querem que o excesso da pandemia entre numa cadeia previsível de signos, transformando o acaso em necessidade, o caos em ordem. O vírus se torna, portanto, apenas mais um prolongamento de um pano de fundo previsível de ideias, sendo nada mais do que um pretexto. As milhares de interpretações religiosas, filosóficas, sociológicas, etc, todas carregam essa característica em comum, essa necessidade de fazer do inédito algo familiar.


Na psicanálise lacaniana, a COISA é um conceito interessante, sendo um objeto que deixa escapar traços de um Real de fundo, ou seja, traz consigo traços de algo que transborda e silencia, não importa se é um cachorro, uma mesa, um notebook, ou qualquer outro detalhe. A COISA deixa escorrer o cheiro ácido do inominavel beckettiano, daquilo que se encontra na própria fronteira da significação. O Real não tem nome, ou cor, nem mesmo contorno, sendo apenas aquilo que se encontra no limite, na borda, quase como se fosse um traço de um modelo kantiano qualquer. Ao contrário de outras áreas, ou mesmo abordagens, na psicanálise o objetivo não é substituir uma interpretação por outra, mas ir além, implodindo a própria estrutura interpretativa, zombando muitas vezes da própria linguagem. O compromisso da psicanálise é simples, nada de outro planeta: é OBRIGATÓRIO evitar a sedução da linguagem, indo além dela mesma, em especial quando falha, quando quebra, quando deixa escapar o mal cheiro da COISA de fundo. Talvez esse silêncio, esse vácuo deixado pelo vírus, acabe sendo mais significativo do que as milhares de tentativas de preenchimento. Não estamos falando de um simples problema, mas de uma pandemia jamais vista até então... uma pandemia que não apenas interrompeu os planos do capitalista porco, mas tambem do crítico do capitalista porco... uma pandemia que fechou mercados, assim como igrejas e universidades... uma pandemia que afeta bastante os pobres, embora ninguem esteja seguro.


Se nem mesmo uma pandemia desse nível conseguiu derrubar as muralhas de nossa própria linguagem, e do tecido simbólico em seus bastidores, acaba sendo irônico falar de debates ou qualquer forma de reflexão, como se fosse simples assim. Se nem mesmo o extremo do possível, nas fronteiras do próprio caos, não nos afeta em um nível mais profundo, apenas servindo como um elemento que reforça o que sempre existiu, e o que sempre pensamos, a própria ideia de REFLEXÃO se torna um sonho distante, muitas vezes uma piada. Na psicanálise, esse elemento extremo que supostamente alteraria os rumos de tudo, mas que acaba apenas reforçando seus contornos iniciais, é chamado de PONTO DE BASTA. Ou seja, ao invés da pandemia ser um caso extremo que coloca nossa linguagem contra parede, nos forçando a repensar o próprio núcleo interno e frágil de suas cadeias de significantes, o que temos é o completo oposto. A pandemia se torna mais um objeto, um simples pretexto dentro de uma série de interpretações de bolso, sem nenhuma novidade.


Lamento desapontar filósofos, cientistas sociais ou religiosos, mas o Coronavirus é algo fora do comum, um evento, no sentido deleuziano, ou um encontro radical, como imaginava Espinosa. Ainda que seja previsível encaixar o inédito nas fronteiras do familiar, daquilo que já conhecemos, muitas vezes o SILÊNCIO pode valer mais. No fundo, bem lá fundo, onde o subterrâneo da subjetividade encontra seu ponto de partida, todos sabem que alguma coisa nessa história toda escapa, transborda, alguma coisa que nos pega de surpresa e nos deixa sem voz, sem chão. A psicanálise foi a que melhor interpretou a pandemia do Covid-19 justamente porque recusou a interpretação, recusou o desejo desesperado por uma saída comum e previsível. A psicanálise nos força a encarar o campo inominável do imprevisível, muito antes de recorrer a fórmulas prontas e disponíveis, apenas aguardando o momento que nossa ansiedade pede por uma saída conveniente.


Talvez seja a hora certa de repensar muita coisa, mas não apenas práticas ou certos assuntos, mas talvez repensar a própria estrutura da nossa linguagem e a forma pretensiosa como nos direcionamos ao mundo e a nós mesmos. Embora existam várias tentativas de interpretação (do religioso, do sociólogo, do senso comum e da filosofia), todos deslizam sobre uma fina camada de gelo, tentando fugir do horizonte doloroso e áspero de um Real que não apenas compromete a conveniência da nossa linguagem, mas zomba de toda a sua pretensão. A psicanálise é a única capaz de interpretar o Coronavirus porque não interpreta, porque encara o silêncio deixado pelo peso das circunstâncias, sem aquele desejo histérico pela busca por uma verdade vinda de um outro supostamente confiável e externo. A psicanálise nos lembra da importância desse silêncio, desse choque inicial, desse sentimento de que algo é maior do que pensava, ainda que logo em seguida outras abordagens apareçam e preencham a lacuna. Ao invés de trabalhar com a linguagem, a psicanálise se preocupa muita mais com o corpo, com esses instantes que simplesmente são, que simplesmente acontecem.


REFERÊNCIA DA IMAGEM

https://www.wilx.com/content/news/Post-offices-implementing-safety-measures-amid-coronavirus-outbreak-569265131.html

215 visualizações0 comentário
SOTEROVISÃO
SOTEROVISÃO

CONHECIMENTO | ENTRETENIMENTO | REFLEXÃO

RECEBA AS NOVIDADES

Faça parte da nossa lista de emails e não perca nenhuma atualização.

             PARCEIROS

SoteroPreta. Portal de Notícias da Bahia sobre temas voltados para a negritude
bottom of page