El Hoyo ou o Poço é um filme espanhol, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, adotado pela Netflix no mês passado. Tem permanecido em primeiro lugar nos streamings mundo afora. Mas o que ele tem de especial? Vou tentar levantar algumas questões.
Numa perspectiva mais social, o poço é uma miniatura, uma maquete do mundo real. De partida, é uma crítica à sociedade capitalista e as injustiças aí envolvidas. Não é uma crítica a desigualdade social, mas à má distribuição dos recursos, no qual alguns tem muito e a maioria tem quase nada ou vive muito mal, sem nenhuma dignidade humana. No modelo econômico em que vivemos, a concentração de renda é elevada a uma pequena elite econômica e a miséria é muito alta para uma parte significativa da população. Isso é um fato. Alguns ainda querem ignorar a realidade. Contudo, esse não é o foco principal do filme. É secundário.
Noutra perspectiva mais de vanguarda, a película segue numa linha mais da antropologia filosófica, que busca explicar a realidade a partir do humano e sua matriz essencial, ou sua própria estrutura fundamental. A questão é: o ser humano é egoísta por natureza ou a sociedade o faz ser assim? Parece uma discussão entre Hobbes e Rousseau esquecendo a tábula rasa de Locke. Três filósofos que todos deveriam ler.
O poço, chamado de Centro Vertical de Autogestão (CVA), é um experimento social (financiado possivelmente pelo Estado) que teria o objetivo de fazer com que os prisioneiros se regenerassem quanto ao seu egoísmo, e assim pudessem praticar a solidariedade espontânea, ou fazer aflorar o lado mais cooperativo.
Há uma aproximação com a obra Laranja Mecânica, de Anthony Burgess , uma distopia que retrata um Estado que impõe ao indivíduo uma recuperação forçada, mexendo em sua estrutura corporal/psicológica. A mecânica do poço é a possibilidade de a CVA ser capaz de melhorar o ser humano, acreditando em sua plasticidade, com o objetivo de que ele retorne ao seio social com um instinto colaborativo. A premissa implícita é: não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fizesse contigo.
Na CVA, qualquer pessoa irá passar pela abundância, os níveis mais altos da plataforma, e pela escassez, os níveis mais baixos, o submundo de Dante Alighieri. Com o tempo, a lógica era que os indivíduos iriam desenvolver uma postura mais solidária, baseada na própria experiência particular, principalmente aos descer aos círculos infernais; pensariam mais nos outros do que em si próprios. Não desejariam mal ao próximo. A comida que cada um pedira ao entrar no poço iria ser consumida, moderadamente, sem excessos. Os habitantes iriam ser regenerados; abortariam seus demônios ou seus pecados capitais: inveja, gula, ira, luxuria, avareza, preguiça. Aos poucos, haveria uma espontaneidade coletiva: o que cada um solicitou chegaria nos 333 andares. A cultura da escassez faria uma mudança de mentalidade.
Uma questão de fundo muita clara que envolve o animal laborans, preocupado em comer, banhar-se, fazer necessidades biológicas e dormir, colocada aqui como condição superior da condição humana: as pessoas mudariam sua natureza individualista porque experimentariam a carência. Viu-se que o experimento não deu frutos. Imoguiri, apologista do experimento e funcionária há muito tempo do Poço, desiludiu-se e chegou à conclusão terrível de que o egoísmo humano era um entrave ao sucesso do CVA.
Galder parece cético sobre as mudanças políticas e econômicas serem capazes de modificar a natureza humana. Pois o problema maior não é exterior. Mesmo Goreng, o personagem principal da trama, retratado como utópico sonhador e genuíno Dom Quixote, fracassou em sua tentativa de mudar consciências por meio do diálogo e cooperação. Percebeu, juntamente com seu parceiro religioso Baharat, que a única possibilidade de criar uma estrutura social melhor, menos desigual, era através da espada, pelas armas, ou seja, uma tentativa forçada de fazer corpos obedecerem pelo temor, sem modificar sua estrutura interna. Afinal, só alguns poucos apoiariam a causa, a uma transformação profunda no Poço, ou na própria sociedade.
A conclusão do filme parece óbvia, palavra tão utilizada pelo filósofo cotidiano Trimagasi, personagem favorito do diretor: as pessoas não mudarão sua essência decaída, já que estão corrompidas pelo pecado ou pela própria natureza biológica, independente do modelo econômico, se capitalista ou socialista. O cenário não é dos melhores.
A única saída, num apelo transcendente, é o surgimento de um novo humano, imáculo e capaz de regenerar toda a humanidade. Mas onde existe esse novo ser? Para o diretor, a menina que aparece lá no fim é uma ilusão, um delírio de Goreng próximo à morte, e não a mensagem para uma Nova Era. Por isso, o filme é extremamente pessimista. Ou será que não? A menina é a última esperança que nós temos, o nascimento de uma nova raça? A interpretação fica por sua conta.
Até mais!
Link da imagem: https://www.belohorizonte.com.br/explicacao-do-filme-o-poco/