Desde o início dos estudos das ciências sociais, havia sempre a discussão do homem biológico versus homem social, travestido de cultura. Este último sofreu uma metástase, se não inteiramente, mas com alguma importância: o homo virtualis. Utilizo esta tipologia, como um esqueleto abstrato, uma ferramenta conceitual analítica, que possibilita traçar algumas de suas características aproximadas. Minha pretensão, contudo, é modesta. Apenas um exercício criativo.
O homo naturalis se sobrepõe a outras espécies sendo sapiens. Ele é, com todos os traços de sua própria existência, como qualquer animal: um ser que transmite genes e características hereditárias a seus descendentes. É um ser incivilizado, mais próximo ao animal do que ao humano. Tem comportamentos instintivos, imprevisíveis, que, em geral, eleva sua vitalidade ao máximo, priorizando seus apetites em detrimento da dor.
Já o homo socialis é uma invenção que pretende transcender a animalidade. Nascemos e as regras estão aí nos formatando. O homem torna-se um ser social, com uma força simbólica e cultural que vem do exterior, incutindo modos de pensar, sentir e agir em nossos corpos e consciências. Ele é regido segundo o poder e a vontade das relações humanas: costumes, regras morais e leis imprimindo um DNA artificial. No início é doloroso, mas depois nos acostumamos, mesmo à revelia de alguns desprazeres.
De acordo com o sociólogo Émile Durkheim, o homo socialis tem uma segunda natureza que só subsiste devido às instituições, fundamentais para manter a coesão social, a solidariedade coletiva. Como será organizada essa sociedade, e quão injusta ela é a uns e outros, varia historicamente. Karl Marx falará sobre uma luta de classes, no qual a minoria – os dominantes - sempre se beneficiará sobre a maioria – os dominados.
Max Weber acredita que o agente social só existe por causa das relações de poder e dominação entre indivíduos, baseada em crenças mutáveis. Sempre há probabilidade de que não funcionem para alguns. Mas elas é que sustentam as relações sociais, evitando rupturas desnecessárias. Já Freud, o pai da psicanálise, dirá que todos temos perdas de energia, algum custo ao entrar no reino da cultura. Independentemente da posição social, do tempo e do espaço, há alguma dimensão psíquica reprimida, naturalmente insuportável a muitos, mas necessária à civilização.
É claro que ao entrar no reino da cultura, da linguagem e seus múltiplos sinais, não abandonamos o animal: ele nos acompanhará até a morte. Mesmo partilhando valores que preservem a vida e a liberdade, não estamos isentos de impulsos destrutivos. Estes, quando mal canalizados, criam o caos.
O homo virtualis ou virtual é um novo fenômeno histórico. Surge numa condição pós-moderna, fruto da maior invenção tecnológica do século XX: a internet. Ele é uma mutação ou variação do homo socialis. Vive no ciberespaço. Sua identidade é, antes de tudo, a-social.
A característica fundamental do homo virtualis é, como padrão de vida, ausência de contato físico. Seu habitat natural é o ciberespaço. Por ser antissocial, prefere a solidão, mas acredita ser sociável. Tem medo de frustrar-se com pessoas diferentes. Sente-se superior e mal compreendido pelo mundo. É avesso às regras de controle. E ainda odeia ser contrariado.
Na realidade, o homo virtualis é infeliz e vive num pântano escuro. Trabalha pensando em como pôr inveja em outros. Quer ser reconhecido pelo que não é; acredita ser alguém especial rejeitado pelo mundo. Associa-se com gente que não pensa diferente. Entra em bolhas ideológicas e paranoias conspiratórias compartilhadas numa mesma visão de realidade. Alguns deles acabam defendendo brutalidades, como tortura, escravidão, pedofilia, homofobia, racismo, terrorismo, assassinatos, fake news, todo tipo de desumanidade e obscurantismo. Não que isso seja exclusivo do homo virtualis. O homo socialis nunca abriu mão da barbárie, individual ou coletiva. Sempre instrumentalizou outros sapiens.
Mas o mundo do homo virtualis é o ciberespaço, onde pode criar perfis falsos e atuar nas sombras, descarregando suas frustrações intermináveis e desenvolvendo novos métodos de subjugação. É a multiplicação, sem limites, do homem-massa, de Ortega y Gasset.
O homo virtualis só se identifica com algo quando é apropriado a si mesmo, quando lhe convém. Seu subjetivismo é combinado com seu prazer, seus apetites, seu narcisismo exacerbado. É juiz de si mesmo, julgando sempre conforme à sua causa. Não se importa com responsabilidade, nem com regras estabelecidas. Persegue ou difama aqueles que não apoiam seus caprichos ou delírios. Não tem preocupação com outros: são apenas objetos descartáveis.
O homo virtualis assemelha-se ao homo animalis em um ponto: ambos não encontram limitações. Mas, ainda sim, aquele é um produto social.
Sendo avesso ao comedimento, o homo virtualis anda conforme seu próprio farol. Em seu tipo mais extremo, transita na deep web ou dark web, no submundo da civilização. No fundo, ele é efeito colateral de uma sociedade que não acomodou a todos. A internet acabou sendo seu último refúgio.É sua grande válvula de escape. E, aqui, se esconde dos dramas que o acompanha. Ele sobrevive regido pelo rancor, frustração, violência, insatisfação, solidão, instabilidade. Veio pra ficar.
Por fim, falei do homo virtualis num aspecto negativo. Ele instrumentaliza o ciberespaço à sua vontade e molda-o conforme seu próprio interesse, com características mais sombrias. Obviamente, não é impossível observar aspectos positivos. Um hacker, por exemplo, invocado com o capitalismo e seus problemas estruturais, pode querer destruí-lo criando um vírus que atinge brutalmente bancos e grandes empresas. A depender do seu olhar para o sistema atual, isso poderia ser bom. Logo, não esgotei todas as possibilidades.
Até a próxima !