Por Francisco Assis"
“Ave Imperator, morituri te salutant” (“Ave, Imperador, aqueles que estão prestes a morrer o saúdam!”). Essa era uma sentença dita na Roma Antiga pelos gladiadores quando adentravam na arena e pouco antes da luta mortal ser iniciada. Essa poderia ser uma frase proferida por aquelas pessoas que, influenciadas pelo presidente Jair Bolsonaro, decidem ir de encontro às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e vão às ruas, tendo a possibilidade de ficar em casa, em meio a uma pandemia que pode levar a uma morte precedida de intenso sofrimento. Assim como o presidente, essas pessoas desconsideram as evidências e, mais gravemente, a ciência, e arriscam as suas vidas, a dos entes queridos e dos demais. A consequência desta atitude para aqueles que perderam entes queridos pode ser um intenso sofrimento psíquico que ultrapassa a dor do luto.
Pesquisa Datafolha, em entrevistas que foram realizadas por telefone, revela que 4% dos entrevistados estão vivendo normalmente, sem mudar nada na sua rotina; 24% afirmaram que estão tomando cuidado, mas ainda saindo de casa para trabalhar ou fazer outras atividades; 54% estão saindo de casa apenas quando inevitável; e 18% estão totalmente isolados, sem sair de casa sob hipótese alguma.[i] A posição do presidente da república estimula a ruptura do isolamento social e coloca em risco a vida das pessoas a pretexto de não permitir que a situação econômica do país se agrave. Isso já vem sendo demonstrado com o afrouxamento do isolamento social no país, a despeito de inúmeros governadores alertarem para a importância de ficar em casa.
Em recente publicação a revista conservadora britânica “The Economist” teve como título do seu editorial “Jair Bolsonaro isolates himself, in the wrong way”[ii] (“Jair Bolsonaro se isola, da maneira errada”). No texto, a revista afirmou que o presidente apresenta “sinais de insanidade” diante da postura adotada para combater a Covid-19. Seria o presidente um psicótico? O que importa é a maneira pela qual ele conduz a política no país, e já está claro que a sua posição é pela ruptura tanto do isolamento quanto do distanciamento social. Como precisamente afirmou o historiador Philippe Ariès, referindo-se à sociedade do século XVII: “Furtar-se ao aviso da morte era expor-se ao ridículo” (ARIÈS, 2014, p. 11).
O novo coronavírus já fez mais de 100.000 vítimas fatais no mundo e mais de 1.000 no Brasil, segundo dados da (OMS).[iii] Os familiares dos que morreram vítimas da Covid-19, ou suspeitos dela, não podem fazer o rito funerário adequado. Os corpos são enterrados ou cremados de modo abrupto, sem chance de realização de uma ritualística de sepultamento como é tradicional fazê-lo. As consequências da perda drástica de um ente querido por uma pandemia e a maneira como são sepultados, representa um sofrimento psíquico profundo que pode ir além do luto.
Na psicanálise freudiana o luto, em geral, representa a “reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa esse lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (FREUD, 2010, p. 172). O luto é um processo lento, que demanda tempo para a sua elaboração e assimilação da realidade da perda, sendo o funeral parte importante desse momento. Mas a Covid-19 suprime o tempo do funeral, rouba parte do luto. Se a aceitação da perda do ente querido não puder ser processada no tempo (pois só no tempo ela se realiza e o velório faz parte do luto), é possível que o sujeito entre em um estágio mais profundo e patológico do que o luto: a melancolia.
A melancolia, segundo Freud, é marcada por um abatimento psíquico doloroso; pelo desinteresse no mundo exterior; pela perda da capacidade de amar, pois o indivíduo investe toda a libido em si mesmo; pela inibição das funções do Eu; [iv] e pela diminuição da autoestima, expressa em recriminações e ofensas que o sujeito, inconscientemente, faz a si mesmo, que pode chegar a uma delirante expectativa de punição (Ibid., p.173). Apesar da libido, no melancólico, estar investida no Eu, a sua autoestima é reduzida porque essa libido estabelece uma identificação do Eu com o objeto abandonado (no caso, o ente querido morto pela Covid-19). Isto significa que “a perda do objeto se transformou numa perda do Eu” (Ibid., p. 181) e toda a crítica que for feita ao objeto abandonado será uma crítica inconsciente ao próprio Eu.[v]
Neste percurso sádico de autopunição do Eu, percebe-se a aproximação com outra atitude devastadora para o sujeito: o suicídio. Segundo Cassorla “o suicida não necessariamente quer se matar, mas matar uma parte de si mesmo.” E conclui: “Isso, porém, é impossível, e ele, como por engano, acaba se matando e morrendo por inteiro” (CASSORLA, 2017, p. 19). Uma vez que devido a perda de um ente querido pela Covid-19, cujo velório praticamente não ocorre, o indivíduo venha a sucumbir perante um estado de melancolia, não se deve desconsiderar a presença de pensamentos suicidas que possam culminar “da passagem ao ato”, isto é, na realização do suicídio.
Suscita também outra questão o fato de que aquelas pessoas que, estimuladas pelo presidente da república, continuam a ignorar as recomendações da OMS e resolvem sair de casa, quando poderiam permanecer em residência protegidos e protegendo os demais de contaminação, reajam negando a realidade. Ao agir de tal forma elas estão se utilizando de um mecanismo de defesa, já que encarar a realidade pode ser algo avassalador. Tal como afirmou Nobert Elias “não é a própria morte que desperta temor e terror, mas a imagem antecipada da morte” (ELIAS, 2001, p. 51). Ao evitar essa imagem pela via da negação, essas pessoas estão rejeitando apenas a representação que fazem da realidade, mas não a realidade em si mesma, pois essa se impõe sobre o sujeito independente de sua vontade.
A conduta do presidente Jair Bolsonaro de indução da população para que saia de casa, aumenta a probabilidade do contágio e, consequentemente, de morte das pessoas que possam vir a ser infectadas. Uma morte agonizante e distante dos entes queridos. Estes, além de também terem a probabilidade de serem contaminados, podem – uma vez que não viveram adequadamente o luto –, adentrar em um estado de melancolia; estado este que pode flertar com pensamentos suicidas.
A gravidade de ter um presidente da república que proponha o rompimento do isolamento e distanciamento sociais, pregando a volta ao trabalho e às atividades normais do cotidiano em meio a um surto viral mortal, deveria levar as pessoas a refletir sobre o que realmente desejam: viver (e não matar ninguém por contaminação) ou inspiradas pelos gladiadores romanos, tragicamente dizer: “Ave, Mito, aqueles que estão prestes a morrer o saúdam!”.
* Graduado em Filosofia e Economia e doutor em Filosofia pela UFBA
Referências Bibliográficas
ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. (Tradução: Luiza Ribeiro). São Paulo: Editora Unesp, 2014.
CASSORLA, Roosevelt Moises Smeke. Suicídio: fatores inconscientes e aspectos socioculturais: uma introdução. São Paulo: Blucher, 2017.
ELIAS, Nobert. “A solidão dos moribundos”. In: A Solidão dos Moribundos, seguido de, Envelhecer e Morrer. (Tradução: Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. “Inibição, sintoma e angústia”. In: Inibição, Sintoma e Angústia, O Futuro de uma Ilusão e Outros Textos (1926-1929). (Tradução: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Obras completas, volume 17).
_____. “Luto e melancolia”. In: Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). (Tradução: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, volume 12).
Fonte da imagem: https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/bolsonaro-ofusca-o-coronavirus-e-reacao-da-oposicao-e-pifia/
[i] Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/04/1988651-28-nao-estao-em-isolamento-social-contra-coronavirus.shtml. Acesso em 12/04/2020.
[ii] Disponível em: https://www.economist.com/the-americas/2020/04/11/jair-bolsonaro-isolates-himself-in-the-wrong-way. Acesso em 12/04/2020.
[iii] Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports. Acesso em 12/04/2020.
[iv] A inibição das funções do Eu estão descritas em “Inibição, sintoma e angústia” e correspondem à diminuição da função sexual, de nutrição (falta de vontade de comer), de locomoção e de trabalho.
[v] Por objeto entenda-se aquilo a que a nossa mente se direciona.