O amor talvez seja a experiência mais desafiadora das relações humanas. Platão apresenta no Banquete o mito das almas gêmeas. A história narra o discurso de Aristófanes, segundo o qual os seres humanos originalmente eram grudados em pares e tinham duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Esses seres eram poderosos e rivalizavam com os deuses, mas os deuses venceram e como castigo resolveram repartir os humanos em dois. Desde então os seres seguiram vagando em busca da alma gêmea, com saudade do par perfeito.
Talvez essa narrativa esteja presente no repertório do imaginário coletivo, quase todas as pessoas em algum momento sonharam em encontrar a alma gêmea e essa busca desencadeia as maiores dores da vida adulta, quem nunca sofreu por causa de um amor não correspondido? Numa esfera mais drástica o amor pode até entrar no escopo das causas de um crime passional. No texto de hoje gostaria de refletir sobre o amor romântico e sobre como a nossa relação com os afetos pode nos enredar num aprisionamento psíquico.
Amar na nossa cultura significa possuir o objeto de desejo. O amor romântico diz respeito a um entendimento equivocado relacionado ao afeto, uma compreensão que coloca a pessoa que ama na posição de possuidor e a pessoa amada num status de troféu. Portanto, amar é possuir e, consequentemente, ter todas as vontades atendidas e satisfeitas. Quando o sujeito que ama se vê frustrado, todo o seu castelo de expectativas vai ao chão, a narrativa de par perfeito elaborada e criada com tanto empenho e determinação é contrariada e a vida perde totalmente o sentido, os dias ficam cinzas e as outras pessoas menos interessantes. A paixão não correspondida tem poderes arrebatadores. Ficamos presos por causa de projeções que não condizem em nada com a realidade, talvez o amor ideal seja só mais uma pessoa normal que o ser apaixonado colocou num patamar de superioridade.
Esquecemos que o amor romântico foi construído culturalmente, ao esquecer disso elegemos as nossas almas gêmeas e construímos um mundo ao redor dessas crenças, e quando somos trocados sentimos a sensação de insuficiência, inadequação e vulnerabilidade. E se experimentássemos esquecer um pouco a fixação por par perfeito, alma gêmea e relacionamento eterno? E se ao invés de construir expectativas em torno dos relacionamentos apenas vivêssemos as relações, um dia de cada vez, doando e recebendo? E se libertássemos o nosso objeto de desejo da obrigatoriedade de nos amar de volta e confiássemos em outros encontros? E se abraçássemos a ideia de que as pessoas são reais com defeitos e qualidades? E se abandonássemos de vez a narrativa do príncipe e da princesa e encarássemos a vida como ela é?
Todo mundo que viveu um relacionamento de muitos anos percebe que a paixão esfria e o amor romântico é substituído por admiração, respeito e amizade. Quem tem filhos sabe que em algum momento a criança vai ter comportamentos insuportáveis e é aí que se torna possível conhecer o amor no seu formato mais verdadeiro, amamos nossos filhos independente do fato deles merecerem ou não esse amor. Amar talvez seja isso, se relacionar de modo gratuito, recíproco e desinteressado com pessoas reais, longe de quaisquer sentimento de posse.
Amar não seria, então, encontrar a alma gêmea. Eu sou muito nova para saber o que é o amor, mas o meu palpite sugere que amar diz respeito a construir um projeto de partilha, significa redescobrir no outro todos os dias um motivo para não desistir do afeto, trata-se de reinventar maneiras de compartilhar o mundo. Amar é aceitar que amores também acabam e ser maleável para permitir outras trocas e encontros. Em uma imagem, amar é como atravessar um rio acompanhado, e nesse trajeto experimentar um pouquinho de felicidade, e também de angústia, é tolerar os dias insuportáveis, é sentir a fagulha divina, é saber que estamos vivos e propensos a encantar e ser encantado.
Eu comecei o texto tentando criticar o amor romântico e termino o texto idealizando outras narrativas de amor romântico, talvez precisemos aceitar narrativas plurais de amor. Ao invés de sermos guiados apenas pela compreensão platônica. Espero que vocês saibam amar e saibam receber amor!!!
Referência da imagem: Ilustração de Rebeca Victória Rocha - @rebecaav