O que o Brasil e os E.U.A compartilham nesse momento de pandemia além de número imenso de mortes por COVID-19 e presidentes que compactuam com o descaso da saúde pública, afetando principalmente a população periférica, majoritariamente negra?
A violência policial contra o povo preto. Essa continua intensamente, não bastando a necropolítica engendrada pelo vírus. Nessa semana, em Mineápolis, cidade do estado de Minnesota, nos E.U.A, ocorreu mais um assassinato de um homem negro. George Floyd foi asfixiado brutalmente por um policial branco, um caso que muito se assemelha a asfixia de um jovem negro por um segurança no supermercado Extra, no ano de 2019, na cidade do Rio de Janeiro.
Para acompanhar a temporalidade do caso de Floyd, uma semana antes, o assassinato de João Pedro, jovem negro, de 14 anos, vitima de bala perdida disparada por um policial enquanto brincava dentro de casa e o descaso, o sumiço do corpo, encontrado um dia depois no IML do Rio de Janeiro, mais uma vez mostrou o quanto o racismo institucional consegue superar uma pandemia viral ou atuar em concomitância com essa .
O Estado que deveria proteger está matando duas vezes, pelo vírus e pela farda. Uma vez que a polícia é uma representação do Estado. O assassinato de George Floyd foi o estopim para a queima de delegacias e uma manifestação histórica na cidade de Mineápolis. Esse levante do povo preto não aconteceria sem o cordão humano de pessoas brancas já que o corpo branco é protegido pelo Estado.
No mesmo final de semana uma mulher branca com um bastão de beisebol invadiu uma manifestação antifascista na Avenida Paulista e foi convidada a se retirar educadamente de lá, algo que deveria ocorrer com todos os corpos, o que não é verdade, é só lembrar de Rafael Braga, preso em uma manifestação por causa de uma garrafa de pinho sol, ele: um homem negro.
Enquanto Mineápolis queimava, um grupo de manifestantes em Brasília, protestavam contra o STF em uma passeata alusiva a Ku Klux Klan. Apesar de um número pequeno, é preocupante que essa ideologia esteja sendo repercutida. Dias antes um grupo de manifestantes utilizavam a bandeira neonazista da Ucrânia em uma manifestação na paulista. Entretanto, a torcida organizada do Corinthians, a Gaviões da Fiel, e de outros times de São Paulo contra atacaram, fizeram um ato antifascista.
Para além da reflexão da luta de classes, a qual deveria englobar a luta antifascista e, da luta contra o racismo, algo que não pode ser descolado da ideia de classe e de gênero. A sensação é que estamos vivendo em um outro tempo ou em uma distopia do agora, uma vez que aglomerações estão ocorrendo em um momento que não deveriam acontecer. Na verdade, essa frase deveria ser reformulada, aglomerações estão ocorrendo como um ato de desespero.
A ameaça fascista e o genocídio do povo preto e pobre ultrapassam a pandemia, uma vez que continuarão ocorrendo e podem provocar uma situação de ditadura militar ou algo pior. A repressão policial de fato já existe para quem vive a margem da sociedade ou tem corpos marginalizado pelos poderes dominantes. A situação pandêmica serviu principalmente para acentuar esse contexto de desigualdade social e racial, alvejando literalmente ou simbolicamente esses sujeitos.
As pessoas que estão participando dessas manifestações estão agindo como kamikazes, apesar de ser muito perigoso heroicizar esses corpos, é nos levantes corpo a corpo que se faz a revolução e não em um contexto virtual que ainda é muito incerto e atolado de fake news. Esses indivíduos, majoritariamente pessoas negras e periféricas, estão se arriscando assim como fazem todos os dias ao saírem de suas casas. Ser preto em qualquer lugar do mundo é está em combate todos os dias, a situação se agrava quando também se é pobre.
Os E.U.A e o Brasil tem uma história que se entrecruza em certos pontos e o racismo é uma delas. Os dois países são racistas. O primeiro admitindo com maior veemência, o segundo nem tanto já que esse é encoberto na ideia de miscigenação e democracia racial. É só olhar para a história dos dois países e perceber o quanto é semelhante a exploração desses corpos desde o período da escravização, resvalando em segregação racial ao longo dos tempos, ainda que no país da América do Sul essa ocorra de maneira mais velada, atualmente nem tanto com a ascensão de um presidente declaradamente racista e da liberdade (na prática, indo de encontro a criminalização na Constituição) de manifestações nazifascistas.
Os protestos em Mineápolis são a manifestação de uma sociedade que já vem demostrando uma doença social, agonizando com as práticas da violência, algo que tem todas as chances de ocorrer no Brasil. Os protestos pacíficos ainda são sintomas do que pode vir a ocorrer futuramente. Podemos repetir a história de Minnesota ou fazer pior. E não apenas com o intuito de quebrar coisas por conta de um confinamento que esquentam os ânimos, mas por um isolamento social dos grupos marginalizados que já atinge a muito tempo a coletividade de quem vive aglomerado nas periferias.
Os grupos nazifascistas, no Brasil, já estão se mobilizando. Atualmente o símbolo não é a suástica, mas, beber leite, algo extremamente Kubrickiano aos moldes de “Laranja mecânica”, encoberto com bandeiras de grupos neonazistas embebidas com muito sangue de pessoas não brancas, acrescento aqui os povos autóctones que muito sofrem nas mãos do Estado, também atingidos com a pandemia do COVID-19.
Enquanto isso, a esquerda brasileira mantém uma postura de intelectual confortável, tentando justificar a pandemia como um modo de não ir para rua. Sim, é preciso se proteger, mas qual seria a outra saída nesse contexto se não ir para rua já que as pessoas estão morrendo pelo Estado em qualquer circunstância? Ou ao menos qual o perigo de criticar quem está agindo como kamikaze para proteger a democracia uma vez que a direita ao desqualificar o vírus tem atuado nas ruas? Seria o caso de endossar o terrorismo virtual para evitar uma exposição ou esse também não seria o suficiente?
É perigoso heroicizar o desespero, mas a pulsão de morte vem de todos os lugares, para usar um termo Freudiano e só através desse movimento é que paradoxalmente a vida ainda consiga ser oxigenada, sem precisar de respiradores. Talvez esse seja um movimento para uma revolução colonial, pensando aos moldes de Frantz Fanon em “Os condenados da terra”. Ou o retardo, ainda, na melhor das hipóteses, uma parada, desse cenário caótico e violento que o Ocidente, em especial, os E.U.A e o Brasil, vivem no século XXI.
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