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É difícil ser uma criança preta no Brasil


Nas últimas semanas recebi várias notícias que deixaram os meus dias um tanto amargos, mas não no bom sentido, como um vinho seco, digo amargo no sentido de travar na língua e não conseguir descer pela garganta, causando um tremendo mal estar. Por um instante foi muito pesado existir. Como se já não bastasse a pandemia, tenho que lidar com a dor da morte de crianças pretas. O racismo todos os dias aparece em suas mais diversas várias faces, quase sempre deixando no chão o rastro do sangue de vidas negras. E eu que sempre julguei ter uma boa relação com as palavras não sei quais usá-las nesse momento. Dói lembrar. Dói escrever. Dói pensar que vivo num país que mata meninos cuja pele tem a cor da noite.


Eu escolhi escrever esse texto em primeira pessoa. Porque sendo mãe e mulher negra, professora de crianças pequenas, pretas em sua maioria, residente da periferia de Salvador, sinto que Miguel poderia ser qualquer vizinho meu ou mesmo um aluno. Não posso usar o impessoal nesse momento, porque a morte desse menino me atravessa o peito e me fere em primeira pessoa.


Miguel com 5 anos, filho de Mirtes, empregada, estava passando um dia no trabalho da mãe – condomínio de luxo da capital pernambucana – a patroa pediu que a doméstica passeasse com a cadela, o menino ficou sobre os cuidados da dona da casa. E aqui é preciso dar nomes aos bois, embora interesses próprios tentassem abafar o escândalo, em tempos de redes sociais já não é possível preservar a imagem dos algozes do povo negro. A senhora que permitiu a morte do menino Miguel se chama Sari Corte Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré, esposa do então prefeito Sérgio Hacker. Enquanto o menino chamava incessantemente pela mãe, a senhora então citada achou uma boa ideia deixa-lo sozinho no elevador, não satisfeita com tal irresponsabilidade apertou o andar da cobertura, o menino saiu no nono andar, subiu pela janela de uma área de refrigeração, se desequilibrou e caiu de uma altura de 35 metros, a mãe o encontrou no chão com vida ainda, mas ele morreu a caminho do hospital.


Imagino o menino agitado chamando pela mãe, eufórico, buliçoso, por natureza curioso, consigo imaginar com tanta nitidez essa figura um tanto universal do que é ser criança porque lido com muitas delas ao longo de 7 anos sendo professora da educação infantil. Dias depois do ocorrido a mãe o adjetivou em entrevista ao jornal nacional como menino teimoso, disse entre lágrimas: “ele era teimoso, custava pegar pela mão e levar até onde eu estava?”, parafraseio aqui a fala daquela mãe em desespero. Um olhar diferente da patroa sobre a criança evitaria o cruel fim da vida daquele menino.


O fato é que as relações pautadas pelo pensamento colonial fazem com que corpos negros sejam vistos de modo consciente ou não como objetos. Não é à toa que aquela mulher achou que o menino teria maturidade para sozinho encontrar a mãe num condomínio enorme e, além disso, que ele saberia lidar com a tecnologia do elevador; pergunto-me se ela realmente pensou isso. De toda forma, o que vejo é uma incapacidade de enxergar aquele sujeito como a criança que ele era, e atribuo essa cegueira à herança escravocrata na qual crianças pretas eram mercadorias, privadas da infância, condenadas ao trabalho forçado.


O racismo tira das pessoas negras a humanidade. Foi assim com George Floyd que mesmo imóvel, indefeso, rendido, gritando que não conseguia respirar, foi brutalmente assassinado por um policial branco. Ali, naquela circunstância, ele não era mais um ser humano, ele era qualquer coisa inanimada.


Vejo muitas mulheres pretas relatando sobre o medo de ser mãe, de colocar um filho numa sociedade tão racista. Ainda essa semana, poucos dias depois da morte do garoto, a blogueira branca Luiza Brasil com mais de 50 mil seguidores fez declarações racistas. Ela afirmou ser natural, fruto do instinto de preservação, o medo de pessoas pretas porque os crimes são cometidos mais por pessoas dessa cor. Em 15 segundos ela jogou fora todo nosso histórico colonial e escravocrata, fechou os olhos para o fato do sistema penitenciário encarcerar e punir a pobreza e a cor da pele, silenciou anos de luta do movimento negro e legitimou um modo racista de perceber a realidade. O pior de tudo é que depois de denunciada inúmeras vezes, essa blogueira apenas disse que tiraram a fala dela do contexto, “que não foi bem assim”, como resultado ganhou mais seguidores no instagram.


O racismo é tão escancarado no Brasil que nem parece ser crime previsto na constituição. Essas notícias tão dolorosas como a morte de Miguel, e também de João Pedro e de tantas outras crianças pretas, somado a inúmeras expressões racistas que aparecem no cotidiano fazem com que mulheres negras não queiram ser mães. Trata-se do medo de ter a vida do filho ceifada pela crueldade do genocídio do povo preto que não dá trégua. No entanto, como professora, mãe, escritora e poeta eu respiro os ares da luta antirracista, acredito nas gerações futuras crescendo com muita força e capacidade de lutar pela garantia dos direitos do povo negro. Essa minha fé na educação pode ser ingênua diante do racismo estrutural, no entanto, seguirei acreditando na luta antirracista e educando crianças para não aceitarem essa injustiça, é o mínimo que posso fazer.


Referências:


Jornal nacional: https://globoplay.globo.com/v/8607222/


Charge de @desenhosdonando: https://www.instagram.com/p/CBB5LtchQFE/

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