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Da Pós-Modernidade à Pós-Verdade. Que isso?

Foto do escritor: Alan RangelAlan Rangel

Michel Foucault, filósofo francês renomado, considerado por muitos como um pós estruturalista, colaborou com a concepção do poder descentrado, sem um núcleo duro que centralize todas as suas formas. Fala-se de microfísica do poder com uma tecnologia difusa. Inclusive a própria ciência é uma forma de poder que cria verdades, disciplina corpos e padroniza comportamentos. Todo discurso que ganha espaço traz, subjacente, formas de expressão específicas de poder. Logo, é impossível separar verdade de poder. E, mais: todo conhecimento é mecanismo de produção de verdade, e de um saber, em um determinado regime de poder.


Uma outra leitura de Foucault é de que o sujeito é efeito ou apenas produto de técnicas específicas de poder. Daí porque fala-se em "morte do sujeito", na obra “As Palavras e as Coisas”. O sujeito não pode aqui ser tomado como ponto de partida, pois ele é meramente resultado de relações de poder. Jaz aqui, então, um antisubjetivismo estruturalista. O homem moderno é somente um joguete.


Outro filósofo francês, Derrida, trouxe a discussão de que não existe nenhum tipo de substância com alguma unidade na leitura de um texto; nada há de objetivo, uniforme ou final: somente um subjetivismo interpretativo, próprio do sujeito. Inexiste algo fora do texto; só múltiplos eus. O tal subjetivismo interpretativista está longe de qualquer achado objetivo. Não cabe uma interpretação universal, pois não há uma identidade fixa. (JOAS; KNOBL, 2017).


Jean Lyotard, na obra Condição Pós-Moderna, fala dos fins das metarrativas (discursos que falam de um telos) e aponta a ciência como somente um jogo linguístico dentre outros. Ela própria não pode mais reivindicar uma superioridade em relação a outros discursos. Conhecimento vai além da ciência, especialmente em sua forma contemporânea. A própria ciência lutaria por legitimação em meio a tantos outros saberes. O fim das metarrativas universais, que afetou, inclusive, o pensamento marxista tradicional, colocou em xeque o próprio discurso científico. Histórias de vida, de grupos tradicionais, biografias e trajetórias individuais, minorias excluídas com vozes ganhando importância dentro da perspectiva da interpretação compreensiva.


Qualquer estilo arquitetônico acabou sendo visto negativamente, por ser tachado de dogmático. Lyotard ajudou a pensar sobre os vários jogos de linguagem (formas de ação, valores, estilo de vida) que foram considerados igualmente válidos. Toda a ideia de totalidade teórica ou uniformidade acabou cheirando a terrorismo. (JOAS; KNOBL, 2017).


Então a pós-modernidade é este mundo mais plural. Ela não morreu dentro da Universidade: foi além. A ciência agora é vista como mais um entre muitos, expondo somente a sua posição sobre os fatos, dando sua interpretação, que está, aliás, imbuída de discursos de poder. Assim, ela própria foi atacada, pois as teorias seriam socialmente construídas, influenciadas pela identidade do pesquisador, supostamente contaminado por seus próprios valores culturais ou ideológicos. Mesmo antes do questionamento pós-moderno, a própria ciência já era questionada por alguns acontecimentos históricos, e por ser instrumento de certos interesses e discursos hegemônicos capitalistas, projetos colonialistas eurocêntricos, de pensamento conservador positivista, e servindo a estados autoritários.


Por um lado, temos a descentralização do sujeito, formando um antisubjetivismo radical, calcado, aqui, como um objeto dentro de discursos de poder; e, por outro, o subjetivismo interpretativo, como uma voz aceita como tantas outras.


As ideias postas pelos pós-modernos abriram espaço para diversidade, liberdade pessoal, direitos civis. Houve uma interface, sobretudo com os novos movimentos da esquerda identitária, em fins do século XX. Foi rompida ainda a fronteira entre cultura popular e alta cultura.


De modo geral, o pós modernismo:


“nega a existência de uma realidade objetiva, independente da percepção humana, argumentando que o conhecimento é filtrado pelo prismas de classe, raça, gênero e outras variáveis. Ao rejeitar a possibilidade de uma realidade objetiva e substituir as noções de perspectiva e posicionamento pela ideia de verdade, acabou consagrando o princípio da subjetividade”. (KAKUTANI, 2018, p.56).


Ao questionar a noção de verdade, esses autores contribuíram, direta ou indiretamente, para enfraquecer o discurso científico. Uma rachadura das narrativas oficiais. “Linguagem e cultura viraram ‘construtos sociais’; ou seja, fenômenos políticos que refletiram a distribuição de poder através de classe, raça, gênero e sexualidade, ao invés de ideais abstratos de filosofia clássica” (D’ANCONA, 2018, p. 85).


Ao escamotear qualquer concepção de verdade, os pensadores pós modernos abriram uma porta bastante perigosa. Sem querer, acabaram sendo profetas involuntários da pós-verdade, que hoje relativiza evidência, fatos, exatidão.


“ [...] E se tudo é um ‘construto social’, então quem vai dizer o que é falso? O que impedirá o fornecedor na ‘noticia falsa’ de afirmar ser um obstinado digital combatendo a ‘hegemonia perversa’ da grande mídia?” (D’ANCONA, 2018, p. 85).


Qual desdobramento para o mundo atual? Pós verdade e o risco da derrocada da democracia. Uma vez, Isaiah Berlin chamou atenção sobre o poder das ideias dos filósofos e intelectuais. Há porosidade entre a vida intelectual e o mundo da ação, da política. Em outras palavras, não devemos subestimar o poder das ideias, pois elas podem, sim, criar o caos. Um bom ensinamento conservador, convenhamos.


Essas ideias, discutidas nos anos 60, acabaram chegando ao mundo político atual, claro que com novas roupagens. Está em voga guerras culturais, entre a visão de mundo progressista versus a regressista (valores reacionários). Vivemos a revanche de grupos antiprogressistas, que perderam a batalha para os progressistas no final do século passado. Há uma revanche contra a diversidade e o multiculturalismo.


“[...] A nova esquerda havia rejeitado os ideais do Iluminismo como vestígios do pensamento patriarcal e imperialista. Hoje esses ideais de razão e progresso são atacados pela direita por serem vistos como parte de uma conspiração liberal para minar os valores tradicionais como possíveis indicativos de um elitismo intelectual [...]” (KAKUTANI, 2018 p. 52).


Os fundamentos ideológicos da pós modernidade saltaram da academia e foram para o mundo-da-vida. Tornaram-se populares. Mais um estado de ânimo do que uma filosofia coerente. No entanto, isso acabou sendo utilizado por propagandistas, políticos e movimentos antimodernos, reacionários, para disseminar pós verdade. A mentira, tal como já existira, em larga escala, nos estados totalitários, como técnica política oficial, acabou se tornando uma estratégia de marketing comum (vide Steve Bannon e sua rede) nos governos democráticos atuais. Esses estrategistas políticos, ultraconservadores, possuem habilidades de manipulação importantes para propaganda política, com a sensibilidade de compor e divulgar notícias falsas nas redes sociais.


Argumentos pós-modernos foram apropriados pela direita populista e extremista, repudiando a concepção filosófica de objetividade. Vários publicistas e pseudointelectuais utilizam da retórica pós-moderna para encobrir, desculpar e modificar a mentira de políticos, que usam de um certo relativismo dos fatos com o objetivo de inculcar discursos negacionistas, como aquecimento global, holocausto, pandemia, anti-vacina, terraplanismo. Há um projeto obscurantista para rejeitar a esmagadora opinião dos cientistas? É possível.


Nobres leitores, chegamos na Era da pós verdade. Pós-verdade (post-truth) tem relação com, ou denota circunstâncias em que fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos a emoções ou crenças[1]. Significa negar evidências, os fatos, e interpretar a partir de um próprio ponto de vista, sem critérios objetivos. O que voga mais são os sentimentos, do que qualquer concepção de racionalidade. O ideal e a veracidade tornaram-se cada vez mais enfraquecidos, a favor do emocionalismo moderno. O coração se sobrepondo à razão. O protagonismo da narrativa emocional à revelia da objetividade dos fatos. A verdade está cada vez mais nos olhos de quem vê. (D’ANCONA, 2018).


“A epistemologia da pós verdade incita que aceitamos que existem 'realidade incomensuráveis' e que a conduta prudente consiste em escolhermos lados, em vez de avaliarmos evidências” (D’ANCONA, 2018, p. 90).




[1] https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/pos-verdade-uma-filha-do-relativismo-cientifico/



Fonte da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=pRu3J5gp2NM


Referências:


D'ANCONA, Matthew. Pós-Verdade. Barueri: Faro Editorial, 2018.

JOAS, Hans; KNOBL, Weiss. Teoria social; vinte lições introdutórias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade. Rio de Janeiro: Instríseca, 2018.

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