O modus operandi da propaganda fascista envolve uma série de elementos que atuam na psique dos sujeitos. A partir dessa perspectiva, Adorno escreveu um artigo intitulado “Antissemitismo e propaganda fascista” que fornece uma visão ampliada das características da função da propaganda na consolidação de um regime fascista. Mas seria possível estabelecer um paralelo entre a exposição de Adorno e a política brasileira contemporânea?
Adorno inicia o texto explicando que as observações que realizou foram baseadas em três estudos feitos pelo Programa de Pesquisa em Antissemitismo juntamente com o apoio do Instituto de Pesquisa Social na Universidade de Columbia que teve como objeto de estudo uma considerável amostra de propagandas antidemocráticas e antissemitas, sobretudo de transcrições taquigráficas de palestras radiofônicas de agitadores da Costa Oeste dos EUA, panfletos e publicações semanais. A finalidade era realizar uma análise psicológica e oferecer material para uma avaliação psicanalítica ulterior.
A propaganda fascista e, no caso em questão, antissemita, analisada por Adorno, opera através da persuasão, manipulando os mecanismos inconscientes das pessoas, sem precisar recorrer a ideias e argumentos racionais. Segundo Adorno, três características marcaram a abordagem psicológica da propaganda fascista norte-americana: 1) é uma propaganda personalizada, não objetiva, isto é, uma propaganda que traz elementos da vida ordinária, comum, cotidiana. Ademais, os agitadores fascistas anunciam o seu líder como alguém tão frágil quanto eles, mas que tem a coragem de admitir a sua fraqueza e, por conseguinte, será transformado no homem forte; 2) Os fins são substituídos pelos meios, ou seja, os agitadores das ideias fascistas anunciam que haverá um grande movimento, mas raramente fazem referência a que fim o movimento se destinará, para qual finalidade a organização é boa ou qual renascimento positivo se pretende alcançar; 3) Uma vez que os meios são glorificados na propaganda fascista, ela mesma se torna seu conteúdo último e funciona, afirma Adorno, como um tipo de realização de desejos. Assim, todos são convidados a participar e desfrutar dos prazeres e benefícios deste grupo seleto.
A analogia da propaganda fascista com os discursos e as ações do presidente da República Jair Bolsonaro e o seu governo não são irreais ou exageradas, pelo contrário, estão presentes em diversos momentos: em (1) é possível perceber como o presidente se coloca como um homem do povo, simples, capaz até de, contrariando as recomendações da OMS, sair de casa em meio à pandemia da Covid-19 e comprar um churrasquinho, arrastando consigo um aglomerado de pessoas, ou ir até a padaria, posar para fotos com funcionários do estabelecimento, beber refrigerante e comer guloseimas enquanto o país registrava 941 mortos pela Covid-19; em (2) a falta de um planejamento econômico para o país é notória, ao invés disso se valoriza as ações que visam à diminuição do Estado, mas sem deixar claro o que de fato se pretende alcançar com essas medidas a não ser a reiteração constante do enxugamento da máquina pública; em (3) a ideia de pertencer a um grupo seleto está encarnada na expressão “cidadão de bem”, que assumiu uma conotação que separa o “eu-nós” em relação aos “outros” de maneira bastante precisa. Nas três características descritas por Adorno é possível encontrar outros paralelos com o Brasil atual que ultrapassam os que foram aqui expostos. No entanto, Adorno continua a sua análise e adentra nos aspectos não “racionais” da propaganda fascista.
Para o filósofo alemão é necessário observar dois aspectos no que concerne à “irracionalidade” do discurso fascista, dado que “ele não tenta convencer [racionalmente] o povo e sempre permanece em um nível não argumentativo”.[i] O primeiro ponto é que a propaganda fascista ataca fantasmas por meio da construção de um imaginário do judeu ou do comunista, separando-o em várias partes e não se importando de que maneira essas partes venham a se relacionar com a realidade. O segundo ponto consiste na falta de uma lógica discursiva e na reiteração de exibições oratórias que Adorno considera como um fluxo organizado de ideias. Este processo funciona da seguinte forma: a relação lógica entre premissas e inferências é substituída por ideias que estão vinculadas apenas pela similaridade, assim a mesma palavra característica pode ser usada em duas proposições completamente desconexas. É um processo que ocorre principalmente através de associações, fugindo, de certa forma, ao exame racional. Referindo-se ao ouvinte daquele que emprega esse discurso, Adorno diz: “Este não tem que construir exatamente um pensamento, pois pode abandonar-se passivamente a uma corrente de palavras na qual mergulha”.[ii] Neste fluxo o ouvinte pode ser levado para onde o seu emissor desejar ou, mais provavelmente, para o lugar onde aquele ouvinte desejaria ser levado.
Apesar de Adorno fazer uso da palavra “irracionalidade”, ele alerta para o fato de que é um termo “vago demais para descrever suficientemente um fenômeno psicológico tão complexo”.[iii] A lógica da propaganda fascista é planejada e organizada, ainda que pese o enviesamento e as distorções fantásticas. O seus agitadores, porque não dizer propagadores, se alinham ao discurso do líder e se tornam especialistas em vender os seus próprios defeitos psicológicos, afirma Adorno.
Este alinhamento decorre, em princípio, por conta do que Adorno chamou de “gratificação”. O ouvinte da propaganda fascista, após ter prazer com ela, torna-se sectário da ideologia como forma de gratidão pelo show. Esse espetáculo representa o cerne da propaganda fascista e atinge sobremaneira o comportamento do líder que precisa mostrar-se vez por outra como um atleta: “É característico dos demagogos fascistas se vangloriar de terem sido heróis atléticos em sua juventude”.[iv] A semelhança não é mera coincidência quando o presidente da República do Brasil afirmou em rede nacional que caso fosse acometido pela Covid-19 nada sentiria ou no máximo teria uma “gripezinha” por ter um “histórico de atleta”. Isso sem contar as vezes em que realizou exercícios físicos em público. São atos e falas que tentam representar a juventude e a disposição “heroica” do líder.
A performance do líder a quem a propaganda fascista se dirige é fundamental para a manutenção do discurso e não deve ser subestimada por aqueles que agem em oposição a ele. Esse aspecto levou Adorno a dizer com precisão que: “Hitler foi aceito, não apesar de suas bizarrices baratas, mas precisamente por causa delas, de sua entoação falsa e suas palhaçadas”.[v] Essa performance faz parte de um ritual cerimonioso que o líder deve executar e que os seus seguidores esperam que ele o faça. Neste sentido Adorno elencou cinco características que, segundo ele, equivaleria a uma decifração psicanalítica do ritual presente nos pronunciamentos fascistas:
1) Existe um estereótipo em toda a propaganda fascista que consiste na repetição de padrões que são do conhecimento de todos, alguns apresentados ao longo do texto de Adorno, tais como: “o dispositivo do lobo solitário, a ideia de infatigabilidade, de inocência perseguida, do pequeno grande homem, o louvor do movimento como tal etc.”;[vi] 2) A relação próxima entre a linguagem e as formas religiosas; 3) O “culto do existente”, isto é, a disposição das pessoas em aderir a uma ideia ou atitude pelo simples fato de que muitas já estão fazendo o mesmo (atualmente os robôs na web têm exercido essa função com mestria) ou por outro lado, o apoio de celebridades ou pessoas bem-sucedidas; 4) A insinuação se apresenta como uma das características intrínsecas do ritual fascista: “[...] tanto a lei quanto pelo menos as convenções em vigor proíbem afirmações abertas de caráter pró-nazista ou antissemita, e o orador que pretende veicular tais ideias precisa recorrer a métodos indiretos”;[vii] 5) A performance ritualística é o conteúdo último da propaganda fascista e o seu significado simbólico pode ser visto como uma oferta de sacrifício. Isso quer dizer que se as narrativas de acusações e atrocidades presentes no discurso da propaganda fascista representam o desejo dos seus oradores e seguidores, então no “cerne do ritual de propaganda fascista e antissemita reside o desejo por assassinato ritualístico”.[viii]
Adorno, por fim, atenta para o caráter destrutivo da oratória fascista, pois o sonho do agitador (propagador) está expresso na união do horrível com o maravilhoso. Ao ressaltar as características do discurso da propaganda fascista no Brasil ou em qualquer país, está se tentando evitar, como diria Adorno, a efetivação do delírio de aniquilação mascarado como salvação, modus operadi do discurso fascista, já que em última instância até mesmo os seus seguidores se transformam em vítimas.
Link da imagem: https://www.brasildefato.com.br/2018/09/26/alemanha-acima-de-tudo
Referência Bibliográfica
ADORNO, Theodor W. “Antissemitismo e propaganda fascista”. In: Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise. (Tradução: Verlaine Freitas). São Paulo: Editora Unesp, 2015.
Notas
[i] ADORNO, 2015, p. 143.
[ii] Idem, ibidem.
[iii] Idem, ibidem.
[iv] Ibid., p. 145.
[v] Idem, ibidem.
[vi] Ibid., p. 148.
[vii] Ibid., p. 149. Provavelmente a falha estratégica do ex-Secretário Nacional da Cultura, Roberto Alvim, foi ter feito um pronunciamento explícito sobre a ideologia totalitária ao reproduzir com outras palavras um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler no governo nazista. O discurso de Alvim gerou uma indignação nacional e internacional que culminou na sua demissão.
[viii] Ibid., p. 151.