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Foto do escritorCarlos Henrique Cardoso

Arranca estátua,tira filme...:a dinâmica da história e o esclarecimento


E continuam as manifestações pelo mundo dando um basta no racismo estrutural. Ingleses derrubaram na cidade de Bristol a estátua que representava o traficante de escravos Edward Colston e atiraram no rio. Na Bélgica, também foi removida a estátua do Rei Leopoldo II, que teria colonizado e dizimado milhares de congoleses, quando os belgas dominavam o Congo. No campo das artes, a plataforma de streaming HBO retirou do seu catálogo o clássico hollywoodiano “...E o Vento Levou”, vencedor de oito oscars, em virtude de seu conteúdo racista. O que essas atitudes simbolizam no combate ao racismo?


A derrubada das estátuas transmite uma transformação na dinâmica da história, cujos fatos são imutáveis, mas seus significados não. É uma reavaliação popular de que essas imagens representam um poder soberano que marginaliza uma grande parcela de desprovidos. E que a destruição delas indica outros rumos de convívio social e assimétrico, assim como o sentido das consagrações históricas.


Muitas esculturas contemporâneas contemplam outro cenário. Estátuas de escritores como Drummond, Jorge Amado, Vinicius de Moraes e outros, estão espalhadas por algumas metrópoles. Em Salvador, Zumbi dos Palmares está personificado em monumento inaugurado em 2008. Na mesma cidade, há esculturas de três gordinhas, retratando as etnias negra, branca e indígena, além da beleza da mulher obesa. Isso demonstra frescor e atenção a outros ares sobre expressões da arte.


Mas e as estátuas que espelham opressores? Muitas estão há tempos integradas ao cenário urbano, algumas ornadas em belos e atrativos paisagísticos, tornando-se patrimônios arquitetônicos. Como a história não se encerra com a destruição delas, caberia sim esclarecimentos sobre quem está ali representado, por uma placa ou informativo. Ou remoção para um museu específico, caso a biografia do carrasco seja tão inaceitável que não se considere sua permanência no local nem mais um minuto. Acho equívoco pensar que esse movimento atual vai sair estimulando derrubada adoidada de tudo quanto é monumento mundo afora, impregnando uma consciência global que vai repaginar o passado cruel de imperadores, reis, e impiedosos conquistadores. Isso seria uma avacalhação do manifesto e sus causas. Porém, quando vemos estátuas serem arrancadas, podem estar se definindo rupturas políticas, sociais, culturais, educacionais... Ao fim do regime comunista da União Soviética, populações dos países independentes derrubaram estátuas de Lenin e outros líderes, em sinal de rompimento com um passado sofrido. É preciso pensar muito antes de especificar atos desse porte como “vandalismo”.


Quanto à retirada de um filme de catálogo, como aconteceu com “...E o Vento Levou”, a situação é mais embaraçosa. A HBO alegou que a película “descreve alguns dos preconceitos étnicos e raciais que tem sido comuns na sociedade americana” e que manter esse filme sem uma denúncia ou explicação “seria irresponsável”. “...E o Vento Levou” retrata a história da sinhazinha Scarlet O’ Hara, que vivia rodeada de mucamas em uma fazenda que funcionava com mão de obra escrava, nos idos do século XIX, na cidade de Atlanta, nos EUA. Até que explode a Guerra Civil e a protagonista cai em desgraça, passando o longa-metragem tentando recuperar a regalia. A servidão negra e alguns castigos físicos estão na trama. Daí a decisão da HBO em remover temporariamente a fábula, que contém passagens problemáticas, e reintroduzi-la com a descrição do seu conteúdo racista.


Os produtores do canal mostram que estão em consonância com as ruas, repletas de manifestantes bradando contra o racismo e suas práticas reprováveis. E lançam um ordenamento de valores que deve ser avaliado. Assim sendo, outras obras podem ser reconsideradas, sempre com explicações anteriores à sua exibição. É uma diligência atenta ao panorama atual. Até mesmo documentários podem surgir produzindo um apanhado de obras semelhantes. Mas nada é tão simples quanto parece.


Um “novo olhar” sobre um produto artístico que retrata princípios nada louváveis, em contextos de épocas muitas vezes ultrapassados, partindo de uma decisão unilateral, pode resultar em outras conformações de mesma natureza moral. Se “a moda pega”, outros direcionamentos podem ser ajuizados. Tivemos recentemente segmentos políticos e autores diversos, em conformidade ideológica, realizando revisionismos históricos sobre a Ditadura Militar, e até mesmo classificando figuras icônicas do movimento negro – como Zumbi dos Palmares e Nelson Mandela – como “assassinos”. A questão é: nunca se sabe quem pode estar por trás de decisões sobre versões de uma história. O que estou me empenhando em abstrair são possíveis contratempos gerados por disposições em evidenciar conteúdos desprezíveis. Apesar de não reprovar a atitude da HBO, considero que a resposta deve vir da própria cinematografia contemporânea, uma alternativa à justificativas reguladoras. Os filmes atuais têm uma preocupação maior com os fatos. Cineastas conseguem obter um foco sensível sobre um passado não tão heroico ou distorcido. Uma refilmagem de “...E o Vento Levou” provavelmente apresentaria outro enfoque no enredo. Enfim, o cinema definitivamente não é uma estátua...


As duas exposições sondadas se alinham na dinâmica da história e do esclarecimento. Mas a história materializada e a artística nem sempre se harmonizam.


FONTE:


- https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/hbo-e-o-vento-levou/


- https://veja.abril.com.br/brasil/derrubada-de-estatuas-vandalismo-ou-reparacao-historica/


- https://www.estudosnacionais.com/25757/hbo-max-tira-e-o-vento-levou-do-ar-alegando-que-o-filme-e-racista/






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