Por Josué Abreu*
Antes mesmo que o coronavírus chegasse à Venezuela, a grande mídia insinuava que o país não estava preparado para enfrentar a pandemia. Diversos portais apontavam para a falta de água, as panes elétricas constantes, a crise no fornecimento de combustíveis e a precariedade do sistema de saúde para atender os pacientes com Covid-19. Os portais chegam a questionar como os profissionais da saúde e demais cidadãos higienizam suas mãos. Esta matéria busca elucidar estas questões levantadas pela grande mídia.
Mais de três meses após o primeiro caso de Covid-19 na Venezuela, o país apresenta 3.150 casos confirmados e 27 mortes no dia 17 de junho, números significativamente menores que os de outros países da região como Brasil, Colômbia, Peru e Equador. Com números tão baixos, os dados foram questionados por grupos opositores como o Congresso Nacional venezuelano, por institutos de pesquisa do país, por organizações internacionais e pela grande mídia. Não há dúvidas de que há subnotificação de casos na Venezuela, assim como existe em todos os países que registram contaminados por Covid-19, porém, afirmar que os dados são falsos ou manipulados ou que o governo está escondendo mortos é uma acusação que está em outra esfera.
Para ter credibilidade, tais acusações deveriam ser reforçadas pelos governadores de Estado, pelos prefeitos das cidades, pelos diretores dos hospitais e demais profissionais da saúde. O portal poderia trazer fotos de valas coletivas, hospitais lotados, corpos abandonados na rua ou outro indício de que o número de mortos e contaminados seja maior do que é divulgado pelo governo. Há quem diga que o número de mortos por Covid-19 na Venezuela é 30 mil. Esta é uma notícia falsa compartilhada por diversos sites pouco conhecidos. Porém, o jornal El País, conhecido e considerado confiável por muitos, beirou a fake news ao lançar uma manchete com o título "Venezuela reportó 10 muertes por Covid-19; HRW y John Hopkins dicen que son al menos 30 mil". No texto o jornal explica, no entanto, que estas cifras eram previsões para o futuro e não o número de mortos naquele momento.
O Blog Venezuela COVID-19 levanta informações sobre os 46 hospitais da Venezuela designados para tratar esta doença. O Blog considera os dados do governo Maduro, dos Estados venezuelanos, das prefeituras dos municípios, dos diretores e profissionais da saúde dos hospitais e da população venezuelana. Até o momento o Blog levantou e publicou informações sobre os hospitais de quatro estados venezuelanos: Anzoategui, Nova Esparta, Apure e Monaga. Não há registro de falta de água nos hospitais dos estados citados no período da pandemia. Embora haja escassez no fornecimento contínuo de água potável no país, os hospitais de Anzoategui e Nova Esparta são guarnecidos por caminhões tanques e o hospital de Monagas possui uma bomba d'água. Embora não haja registro de falta de água no hospital de Apure durante a pandemia, os profissionais da saúde estão recebendo doações de kit higiene com água potável e sabonete. Em relação à escassez de água potável é importante dizer que casas e hospitais possuem caixas para armazenamento e que a maior parte dos venezuelanos tem acesso à água ainda que de forma intermitente. Os venezuelanos que têm acesso a água não potável podem tratá-la por meio da fervura ou das pastilhas de cloro doadas pela UNICEF. Estas ações certamente reduzem os impactos da escassez no fornecimento contínuo de água potável.
A sensação de que não há água na Venezuela nem para lavar as mãos se dá em função da forma como os dados são divulgados. Quando uma pesquisa realizada pelo Programa Mundial de Alimentos, difundida pela Humans Rights Watch, afirma que 25% dos lares venezuelanos não têm acesso contínuo a água potável, esta não considera que 75% têm acesso contínuo, que parte dos 25% tem acesso não contínuo, que caminhões tanques guarnecem lares e hospitais que apresentam falta de água, que alguns hospitais possuem bombas d'água, que comunidades possuem poços, que a água potável pode ser armazenada em caixas e que a água não potável pode ser tratada. A pesquisa não considera tampouco que os hospitais designados para tratar a Covid-19 são guarnecidos de forma preferencial.
O hospital de Apure registrou falta de energia antes que o Estado tivesse casos significativos registrados. Porém, no dia 30 de março foram realizados reparos na subestação interna do hospital e no dia 24 de abril toda a estrutura interna e externa estava iluminada. Apure se tornou o estado mais atingido no dia 27 de maio. O Estado de Anzoategui foi guarnecido por geradores a diesel durante as panes elétricas e o hospital de Monagas possui 5 geradores. Embora Apure seja o Estado mais atingido pela Covid-19 na Venezuela, o hospital designado para atender pacientes com esta doença no Estado não está lotado. Diversos profissionais da saúde possuem perfis ativos no Instagram e postam a rotina do hospital nesta rede social. Os perfis podem ser encontrados na hashtag da organização opositora ao governo de Nícolas Maduro #onemilkforvenezuela. É possível observar a ausência de pânico nas fotos dentro e fora do hospital.
Os Estados estudados não registraram nenhuma morte por Covid-19, embora fake news tenham circulado pelo país e tenham sido desmentidas pelos profissionais de saúde dos hospitais e por governadores de Estado. Pessoas foram detidas e condenadas pelo Ministério Público por incitação ao pânico, perturbação da comunidade, dentre outros delitos relacionados à divulgação de notícias falsas. Embora alguns portais afirmem que as prisões ocorreram em função de denúncias realizadas por estas pessoas, estes veículos de informação não confirmam a veracidade do conteúdo difundido.
Para se pensar sobre subnotificação é essencial analisar a quantidade de testes realizados. A Venezuela é o país que realiza a maior quantidade de testes por milhão de habitantes na América Latina. Os críticos denunciam que o país realiza poucos testes do tipo PCR (Polymerase Chain Reaction), considerado o mais confiável, e fazem pouco caso dos mais de 25 mil testes rápidos realizados diariamente no país. Embora os testes rápidos sejam menos confiáveis que o PCR, a quantidade realizada diariamente não pode ser ignorada. Além disso, a Venezuela está aumentando a cada dia a sua capacidade de processamento de testes PCR. Desde o início da pandemia o país aumentou em quase oito vezes a quantidade de testes deste tipo realizados diariamente. No dia 23 de abril, o infectologista ligado ao Congresso Nacional, Júlio Castro, disse que a Venezuela realizava 80 ou 90 testes PCR por dia. Porém, no dia 22 de maio, o representante da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) na Venezuela, Gerardo de Cosio, afirmou que o país realizava entre 600 e 700 testes deste tipo diariamente. No dia seis de junho a Venezuela recebeu uma doação da China que conta com equipamentos para aumentar ainda mais a capacidade de realização destes testes.
Em função da desconfiança em relação aos dados divulgados pelo governo de Nícolas Maduro, o Congresso Nacional telefonou para milhares de venezuelanos em busca de pessoas com sintomas de Covid-19. Até o dia 29 de abril, o Congresso Nacional realizou 30 mil chamadas. 474 pessoas necessitaram de atenção pessoal, porém nenhuma delas foi diagnosticada com a doença. O teste positivo, no entanto, indicaria apenas uma subnotificação e não necessariamente um falseamento dos dados. Considerando que nenhuma pessoa foi diagnosticada com Covid-19, o Congresso Nacional dá indícios de que o número de pessoas contaminadas é de fato baixo e que a subnotificação não é tão elevada. Embora nenhuma pessoa tenha testado positivo, o Congresso Nacional compartilhou notícias falsas sobre supostas mortes que posteriormente foram desmentidas.
A baixa taxa de contaminação e mortalidade por Covid-19 na Venezuela pode ser explicada pela rapidez na adoção das medidas restritivas pelo governo. O isolamento social e toque de recolher foram decretados no dia 13 de março, as fronteiras foram fechadas no dia 17 de março e neste mesmo dia o transporte coletivo e particular, urbano, interurbano e intermunicipal foi restringido aos profissionais dos serviços essenciais. Os vôos foram restringidos a cargueiros e correios, o uso de máscara no transporte público passou a ser obrigatório, o abastecimento de veículos foi restringido aos profissionais das áreas essenciais, dentre outras medidas.
Cabe ressaltar que o primeiro caso de Covid-19 foi registrado na Venezuela no dia 13 de março. O número de contaminações comunitárias é muito baixo neste país, quando comparado aos casos importados. Aproximadamente 70% dos casos registrados são de venezuelanos que foram contaminados no Brasil, Colômbia, Peru e Equador. Embora as fronteiras estejam fechadas, os venezuelanos estão autorizados a voltar. Desde o início da pandemia, mais de 50 mil venezuelanos regressaram ao país após terem deixado a Venezuela no contexto da crise política.
* Psicólogo e doutorando em Antropologia da Saúde pela UFBA. Colunista do Brasil 247.
Link da imagem: https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/2020-04-10-covid-19-china-e-venezuela-vao-ampliar-cooperacao-para-prevenir-pandemia/
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