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Você sabe o que é Iluminismo, jovem?

Foto do escritor: Alan RangelAlan Rangel


“Os homens libertam-se pouco a pouco da brutalidade, quando de nenhum modo se procura, de propósito, conservá-los nela” (p.10).


A resenha desta semana é sobre um pequeno opúsculo do filósofo alemão Immanuel Kant: “ Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo”, escrita em 1784.


“iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado” (p. 1). A menoridade significa ser conduzido por outrem em vez de andar com as próprias pernas. A menoridade é um estado psicológico/comportamental, por assim dizer, de quem é desprovido de entendimento próprio. Se a pessoa é ignorante tem culpa no cartório. Se tem possibilidade de ir além da carência de entendimento, e recua, é também culpado. “Sapere aude!”, atreva-se a conhecer. Atreva-se a servir de si mesmo. A coragem é imperativo moral, incondicional, na senda do esclarecimento.


“ É tão cômodo ser menor”(p.1). E por quê? Para Kant, as pessoas preferem a preguiça e a cobardia, por isso é melhor ser tuteladas durante toda a existência.


“Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida” (p.1).


A maioria das pessoas preferem continuar as suas pobres vidas sem precisar pensar por si mesmas. Ou que é difícil olhar a si mesmas, enfrentar o reflexo no espelho. Elas têm medo de andar sozinhas. A educação, se bem utilizada, é uma ferramenta poderosa de combate ao medo.


“É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza” (p.2). O mal-uso da razão, ou mesmo o medo de usá-la, é condição sine qua non para continuar o cárcere da menoridade. Uma menoridade perpétua. São poucos os desbravadores que realmente possuem coragem de quebrar as algemas da servidão; de viver numa de condição liberta. É necessário transformar o espírito, reformar a consciência.


“É perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade” (p.2). O pensador coloca como algo inevitável que um indivíduo que possua liberdade recue ante à escuridão e o medo. Todavia, é um processo lento chegar à ilustração; passa também pelo compromisso de algumas pessoas, mais esclarecidas, digamos assim, a auxiliar outros. Sem o necessário auxilio, as massas continuarão destituídas de pensamento próprio e viciadas no parasitismo cognitivo. Continuarão acríticas.


O comportamento das autoridades, que não estimula as pessoas a pensarem por si próprias, dificulta o processo de ilustração, e usa muito mal sua prerrogativa pública. “Diz o oficial: não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita!” (p.2). Restringir a liberdade do povo é trabalhar a favor da manutenção da menoridade.


“Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado” (p.3). É responsabilidade dos homens públicos agir com a finalidade de promover o estímulo ao pensamento próprio no cidadão. Existe também o chamado uso privado da razão: “[...] chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado” (p.3). Em

assuntos que têm a ver com o interesse de uma organização, ou uma pátria, é necessário agir em conformidade com as decisões coletivas. Uma atitude passiva, humilde, em favor do público, impedindo sua própria destruição. Em outras palavras, para ser sujeito esclarecido é também fundamental saber a hora de obedecer, de não exceder a liberdade privada, não prejudicando a sobrevivência da sociedade.


O sujeito livre deve ter sabedoria para obedecer, pois


“O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; e uma censura impertinente de tais obrigações, se por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o dever de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas ideias contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescrições” (p.3)


Percebem leitores, que a liberdade não é faculdade de fazer tudo que se quer na vida, mas fazer dentro do que é permitido pela lei ou normas. Se não concorda com elas utilize algum meio para questioná-las, sem uso da violência, mas com a palavra, agir como perito, com bons argumentos ao convencimento. É possível revisar escritos anteriores, questioná-las. Mas querer passar por cima das normas por mero capricho, ignorância, ou tola insubordinação, sem agir conforme à razão e os procedimentos legais, aí não é aceitável: é barbárie!


Também proibir pessoas que não concordam com alguns preceitos e regras estabelecidas é bárbaro. E qualquer liderança política, religiosa, militar que censura qualquer possibilidade de pensamento discordante age contra a liberdade humana.


Kant acreditava no avanço irresistível da Ilustração. É um crime contra a natureza humana proibir que o indivíduo pense por si. O avanço da humanidade só seria possível se caminhasse em tal sentido. Um rei esclarecido (Frederico II, admirado por Voltaire no século XVIII) deve tomar decisões que estejam em alinhamento com o progresso, com o desenvolvimento da arte, da ciência, da educação, da filosofia. Se o povo não pode ser capaz de tomar as rédeas da política, pois a maioria não era preparada para tal (Kant não era muito chegado a Democracia), o soberano nem por isso deve agir contrario à liberdade dos súditos. Devem estes buscarem por si seus esclarecimentos.


“Se, pois, se fizer a pergunta – Vivemos nós agora numa época esclarecida? – a resposta é: não. Mas vivemos numa época do Iluminismo”(p.6). O século XVIII, chamado de “Século das Luzes”, era um pequeno passo na História, um passo que deixaria raízes à posteridade. No tocante a religião, a maioria das pessoas estava tutelada por seus clérigos, sendo estes ainda muito responsáveis por travar o salto a maioridade. O processo é gradual. Na política, Frederico II contribuiu com a liberdade religiosa da população. O filósofo alemão o elogia bastante por ter dado ao gênero humano servir-se de seu próprio discernimento. A religião seria o grande empecilho para que os humanos pudessem sair da infância da consciência. É a mais prejudicial e mais desonrosa tutela que existe.


No último parágrafo, ele reitera que há uma inevitável tendência da natureza humana à vocação do pensamento livre. Existe também uma relação paradoxal. Em matéria de Estado, onde se fecham as portas da liberdade sempre haverá resistências a romper com a censura. Quer dizer que nenhum governante consegue suprimir cabalmente o ímpeto natural dos homens à liberdade. Também, onde há muita liberdade, sem limites, sem restrições, sem senso de dever, há perigos eminentes à sobrevivência da ordem social.


Do que podemos apreender deste texto escrito em 1784? Faço apenas uma reflexão longa, mas necessária. Atravessamos uma má compreensão, para ser bem generoso, de que liberdade serve pra tudo. Então, se eu acho que uma autoridade é uma droga, eu vou no twitter ou facebook e digo: é uma droga. E xingo mais e mais, mostrando minha incapacidade, meus descontrole de organizar as ideias e fazer uma crítica objetiva com dados, com conhecimento de causa e decoro. Não deveríamos prezar pelo diálogo, pelo esclarecimento das ideias calcadas na racionalidade, no respeito às pessoas e as instituições?


Acontece, meus caros leitores, que confundimos liberdade de pensamento com fazer qualquer coisa. Discursos de ódio a minorias, por exemplo, é justificado pelo livre pensar, como um direito inalienável. Imaginem isso! Se Kant estivesse vivo, o que ele diria?


A simples insubordinação a uma instituição, a ameaça a existência delas, exemplo de um parlamento, do judiciário, da imprensa, com requintes de vingança e imponderação, não tem nada a ver com tolerância e liberdade de expressão. Isso é obscurantismo! O iluminismo que Kant falava, a propensão ao homem esclarecido, é também saber cumprir seus deveres com responsabilidade perante ao público, ao seu país e aos concidadãos. Afora isso não existe civilidade.


Se não concorda com as leis, com as normas, com a opinião alheia, utilize argumentos objetivos, claros, lógicos, verdadeiros, e convença a todos sobre como modificar algo. Só não eleve a sua ignorância, seu despreparo intelectual, técnico e sua mediocridade moral como uma forma de passar por cima das convenções e dizer que é livre para fazer o que bem quiser. Se não sabe argumentar, se não conhece os pormenores de um tema, se é preguiçoso para debruçar-se sobre uma lei, cala-te!, não aja como um qualquer que pretende saber sobre tudo. Reconheça a sua ignorância e transcenda-a.


Infelizmente, uma praga contemporânea foi lançada e o vírus da desgovernaça mental e da imbecilidade tem tomado a esfera social: na política (vide a ascensão de governantes ignorantes, autoritários, que estimulam a antipolítica e a perseguição aos que pensam diferente), na internet (pseudo intelectuais que falam sobre tudo, sem nenhum preparo, inventando histórias mirabolantes, apostando em conspirações e inverdades de todo tipo) , nos movimentos de rua (em que muitas pessoas acreditam que o melhor caminho à ordem é passar por cima de tudo e de todos). Eis aí completa rebelião da ralé! O zeitgeist do nosso tempo.


A falta de erudição, a normalização da delinquência intelectual e moral, o rebaixamento da consciência individual, é completamente contrário a qualquer disposição a maioridade, do qual Kant acreditou ser um processo sem volta no gênero humano.


Se a maioridade, da qual o grande filósofo tanto advogou, é uma predisposição ao espírito humano, alguma coisa deu errado. Parece que a História não segue em linha reta ou algo a desviou.


Até a próxima!


Link da iamgem: http://acammg.com.br/artigo/sapere-aude-de-kant-ouse-saber


Referência:

KANT, Immanuel, Resposta à pergunta: o que é o iluminismo, in A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1990. (http://www.uel.br/cch/his/arqdoc/kantPDEHIS.pdf)

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