Talvez você tenha chegado a esse texto por obra e graça do desespero. Eu sou mãe de uma menina de 4 anos e sei como tem sido difícil distraí-la nesse momento tão delicado. A rotina é uma das coisas mais importantes para uma criança pequena e com a chegada do coronavírus o cotidiano de muitas famílias foi drasticamente modificado, além disso, o estresse e instabilidade emocional aumentaram bastante e tudo isso se reflete na vida dos pequeninos.
A princípio preciso dizer que, infelizmente, esse texto não possui fórmulas mágicas. Qualquer texto que sugira uma receita sobre qualquer assunto deve ser visto com suspeita, isso porque a vida não funciona desse jeito, cada dinâmica familiar vai mobilizar a organização do afeto e interação de um jeito diverso. Talvez o conselho mais valioso desse texto seja: é preciso conhecer os seus filhos ou filhas, descubra qual a melhor maneira de conversar com as crianças e fuja de abordagens agressivas (essa comunicação só gera mais problemas).
No romance “A filha perdida”, Elena Ferrante (2016, p. 50) por meio da personagem Leda nos traz a seguinte frase: “Um filho é, de fato, um turbilhão de aflições”. Eu complementaria dizendo que, para além da agonia, há também muita delícia. Como tudo na vida, a criação de uma pessoa é solo fértil para a contradição. E em tempos tão sintomáticos, talvez seja fundamental aceitar que terão dias mais difíceis que outros e que a cada manhã é possível recomeçar na jornada de tentar ser um pouco melhor.
Lendo e escrevendo sobre afetos e relações eu ressignifico o meu olhar sobre a minha maternidade, meu lugar de fala é de mãe solteira que tem muito apoio dos avós para os cuidados com a minha pequenina, percebi que criar uma criança é uma ação coletiva, precisamos de mãos amigas, de referências múltiplas de olhares diversificados e quanto maior o leque de perspectivas que se oferece a uma criança maior vai ser a sua capacidade de lidar com o diferente.
Muitos pais estão tendo dificuldade em lidar com as aulas on line. Isso tem sido um transtorno para toda comunidade escolar. Principalmente porque existe uma cultura de não acompanhamento da vida escolar do filho ou filha e isso tem aparecido de maneira mais nítida agora em tempos de pandemia. Não quero me debruçar sobre este assunto, o que tenho a dizer é que percebo que as pessoas querem empurrar as aulas on line como se elas por si só já resolvessem todo o problema e como se tudo estivesse em seu estado de normalidade. É preciso serenidade para entender que a qualidade de ensino vai ser atingida sim, parar de fingir que está tudo “ok” quando boa parte da população não tem acesso a internet de qualidade e outra parte não tem nem meios de subsistir. As pessoas mais pobres estão lidando com uma prioridade urgente que é manter-se saudáveis e não dá para exigir dessas famílias que se preocupem com outras coisas além disso. Aos professores eu dedico a minha maior admiração e solidariedade pois sei que não está sendo fácil lidar com tanta novidade, vocês são também grandes heróis por conseguirem equilíbrio e adaptação em tempos tão difíceis. Não me incluo nessa categoria pois, apesar de ser professora, as atividades onde trabalho foram suspensas.
Estou isolada, ocupo um lugar de privilégio, a quarentena me fez mais próxima da minha filha, estamos lendo juntas, contando vários objetos aleatórios, aprendendo as vogais e tudo isso foi possível porque eu ouço minha filha e ela me ouve, assim a gente tem uma relação de “quase” iguais, no entanto, por ser a adulta tenho alguns poderes que ela não tem.
E como lidar com os limites? Eu tento estabelecer limites claros e objetivos com algum grau de flexibilidade para que ela sinta também o sabor da liberdade, depois de dizer um “não” e receber como resposta uma birra, eu enfatizo um pouco os motivos daquele “não” e depois mudo completamente o rumo da prosa, não sei se isso é correto e acho que a moralidade aqui não vem ao caso, mas isso tem funcionado e sempre funciona também com meus alunos (as). Eu chamo de “malabarismo discursivo”, quando tiro o foco de atenção da uma criança que está autocentrada em sua própria birra e transfiro isso para um objeto externo, funciona muito com brinquedos, por exemplo: “acho que o Cebolinha deu um beliscão na Laidybug, vamos checar essa situação?”. Não é sempre que dá certo, mas é muito melhor do que um ataque de fúria. Criança é movida à base do faz de conta, entrar na brincadeira pode ser divertido e surpreendente.
Por trás de uma criança enfrentando um adulto tem uma identidade gritando para ser afirmada, essa postura faz parte do desenvolvimento humano, se seu filho ou filha te contraria entenda que nesse ato ele está se tornando um indivíduo, com personalidade própria. A questão é mostrar desde muito cedo a relação de causa e efeito, responsabilidade e consequência dos atos. Mas isso precisa ser sempre afrouxado em algum momento porque a criança é um ser amadurecendo, é preciso ter bom senso para não tratá-la como um ser já maduro.
Ninguém nasce pronto. Estamos nos constituindo e aprendendo por meio dos encontros e trocas afetivas. Se dê uma chance de observar seu filho ou filha brincando e perceba qual a melhor maneira de acessar esse mundo lúdico.
Referências
FERRANTE, Elena. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
Imagem:https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/03/17/coronavirus-pais-com-guarda-compartilhada-podem-ser-afastados-dos-filhos.htm