Miles Davis na caixa, vodca, gelo e pronto: cá estamos, viajando por estradas que não possuem em sua essência a concretude dos asfaltos ou as partículas de poeira das pistas de chão cru, mas que nos dão de presente às portas dos limiares, o estágio em transição que somente o voo, e jamais a terra firme, é capaz de proporcionar. Nego-me mesmo a tentar descrever seus tons em sensações palpáveis, ainda que em textura fina. As canções do mestre do jazz caem bem num campo bucólico e com gelo no copo, mas também longe dele e no meio de um ônibus lotado, no lixo de uma zona central mal conservada, no luxo de uma cobertura de frente para a santa baía, no calor do sexo feito num quarto fodido e velho, numa festa da high society - e da low society também. Tais canções, enfim, como a vodca que lava o gelo e como o gelo que molha a vodca, mesclam-se ao ar e coordenam os sentidos gerais a partir de uma posição imponente. Como gelo e vodca, as canções de Davis escorrem sentido abaixo e nos dão cores novas em um mundo por vezes tão surrado, tão cheio de nossa presença por sobre sua relva outrora tão verde e vívida - mestre, com teu jazz na vitrola, sempre estaremos a seven steps to heaven! Onde quer que tu estejas, acredite em mim, não por mim, mas pelas tuas próprias viagens hipersensoriais transcritas no surrealismo de notas que paralisam e ao mesmo tempo projetam em todas as almas o infinito, viagens que não me pertencem nem pertencem a ninguém, a não ser à própria sincronia perfeita do Universo, sincronia a qual, graças aos céus, não é típica da raça humana, raça demasiado anárquica e boba. Mas quem disse que tuas composições são um feito humano, meu camarada? Desde pequeno ouço a história de que os deuses tocam música. Bom, não sei se existem deuses, quem deu origem ao ser e ao nada, nem tampouco sei se há vida para além das dimensões esculpidas por teu sopro criador...
Referência:
https://www.hypeness.com.br/2019/06/disco-perdido-com-musicas-ineditas-de-miles-davis-sera-lancado-em-setembro/