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Existe música medíocre?


“Tu és divina e graciosa

Estátua majestosa do amor

Por Deus esculturada

E formada com ardor

Da alma da mais linda flor

De mais ativo olor

E que na vida

É preferida pelo beija-flor”

“Cu de cachorro, cu de cachorro

Cu de cachorro, cu de cachorro

Ele caga, ele caga

E não suja o brioco”


Música boa e música ruim. Quase sempre, o que é de bom gosto é algo bem trabalhado, com sofisticação, arranjo harmonioso, boa voz, melodia confortante. O ruim, tende a ser o oposto. Mal produzido, mal interpretado, brega, péssima letra, repetição interminável de ruídos. O ruim costuma também ser referido como “medíocre”. Na semântica mais culta, essa palavra significa “mediano”, “médio”. Mas na linguagem coloquial significa algo de péssima qualidade, horrível. E então? Existe música medíocre?


Tomemos como exemplo a célebre “Caneta Azul, Azul Caneta”, o maior sucesso da curta história do WhatsApp (mas não o primeiro. “Trem Bala”, de Ana Vilela, foi o pioneiro). Ficou tão viralizada que seu intérprete, o maranhense Manuel Gomes, virou celebridade e realizou uma live que superou em visualizações artistas como Capital Inicial, Alcione, Claudia Leite e Paula Fernandes. Tudo isso através de uma música que muitos clamam como “medíocre”. Mas a mediocridade significa o que?


Música é sensorial, escutamos de acordo com nosso emocional, ambientação e estado de espírito. Gera estímulos, vibrações, recordações. Ela segue uma proposta. Cada ritmo, gênero, ou cadência tem seu lugar. Uma bossa nova pode ser agradável e provoca admiração pelos seus acordes suaves, mas seria ideal pra reunir uma galera e "queimar uma carne" na laje num domingo ensolarado? Ao mesmo tempo, alguém colocaria Racionais MC durante um encontro romântico com uma companhia que deseja seduzir? Cada música tem seu lugar, seu espaço, sua zona de propagação. Podemos manifestar ojeriza pelos mais variados cânticos e até considerar que algo pode ser mal feito. Mas isso conceitua que algo é realmente medíocre?


Voltemos a Manuel Gomes, o autor de “Caneta Azul”. Ele é vigilante, gravou um vídeo despretensioso que ganhou grande repercussão. Existem milhões de Manuel Gomes Brasil afora exercendo diversas atividades mal remuneradas, com algumas composições, sonhando com uma oportunidade de sucesso, cantando em barzinhos e serestas nas horas vagas, esperando o dia que alguém o note para que ele deixe sua vida modesta para trás. Essas pessoas têm poucas referências musicais “de qualidade”, sem alcances musicais amplos. Manuel Gomes é um pobre coitado que almeja melhorar de vida e sonha, como qualquer trabalhador, em conseguir alguma mobilidade social. Mencionar que sua música é medíocre é ignorar parâmetros de acesso dessas pessoas a algo dito “bom”.


Eu não classificaria nenhuma música com padrão medíocre, mas há, digamos, canções com “prazo de validade” e com pouca serventia. Lembrei daquelas “boy’s band” que se apresentavam muito em programas de auditório e fazia a festa das moçoilas presentes. É o exemplo de música propícia e que atende uma determinada faixa etária, que ao adentrar as últimas fases da adolescência, entram em contato com outros repertórios, à medida que vão se aproximando da idade universitária, abandonando seus gostos de moldes juvenis. Os artistas que propagam esse som, geralmente tem um acesso maior a diversos estilos musicais, conhecem muito material “de qualidade”, mesmo muitos deles sendo bem novos, mas optam por um estilo de música adocicada, com refrões pegajosos e um sorriso com milhares de dentes. Mas tocam para um público, ele existe, e deve ter suas referências. Nenhum demérito nisso. Também não vou classificar como medíocre.


Ainda mais após estudos recentes que confirmam o declínio da hierarquização da cultura, quando a distinção entre gostos eruditos e leigos fica menos evidente. O sociólogo americano Richard Peterson cunhou a expressão “onívoros” para definir indivíduos que podem consumir todo tipo de arte, dando espaço para os mais variados interesses, desde apreciar óperas e ser fã de Hip Hop, como cantar Sex Pistols a plenos pulmões e frequentar shows de Larissa Manoela. Ou seja, sectarismos artísticos e segmentados vão caindo por terra, conforme avançam as gerações.


Os dois exemplos no início do texto foram apenas um chamariz provocativo, sem pretensões de comparar ou fazer analogias, é óbvio. Além de que, os contextos geradores são gritantemente distintos. O que quero deixar claro é que enquanto uma pode ser ouvida sorvendo um bom vinho, a outra socializa uma turma afim de sacolejar o esqueleto após uma semana estafante de trabalho. Onde cabe a mediocridade quando ela atende a harmonização do momento? Medíocre são as pessoas, com suas frustrações e limitações diversas. Não confundamos mediocridade com futilidade.


FONTE:

BAUMAN, Zygmund. A Cultura no Mundo Liquido Moderno. Zahar: 2013.

Composições: “Rosa” (Otávio de Souza / Pixinguinha)

“Cu de Cachorro” (Gabriel Bartz)


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