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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

O QUE MARX TEM A DIZER SOBRE O SUICÍDIO?


Marx é conhecido, sobretudo, por ser um revolucionário comunista e essa imagem é usada para diversos propósitos, tanto críticos quanto elogiosos. Crítico da sociedade burguesa, Marx se dedicou na maturidade a analisar o sistema capitalista, mas na juventude se debruçou sobre inúmeros temas, dentre os quais está o suicídio. Mas de que forma? Quais foram as suas conclusões? E em que medida elas contribuem para lidar com a problemática do suicídio na sociedade contemporânea?


O interesse de Marx em analisar o tema do suicídio ocorreu no momento em que ele teve acesso ao “Mémoires tirés des archives de la police de Paris” [Memórias extraídas dos arquivos da polícia de Paris], publicado em 1838 por Jacques Peuchet, um ex-arquivista policial francês. Um dos capítulos da publicação chamou a atenção de Marx: “Du suicide et des ses causes” [Do suicídio e suas causas]. A partir de então Marx se empenha na tradução para o alemão deste capítulo específico, que foi intitulado “Peuchet: vom Selbstmord” [Peuchet: sobre o suicídio], publicada em 1846. A edição em português que ora se utiliza chama-se “Sobre o Suicídio”.


Na medida em que realizava a tradução para o alemão, Marx enxertava o texto com comentários e anotações que foram dando um caráter particular à obra. Assim, “Sobre o Suicídio” pode ser considerada como uma obra de Marx/Peuchet.[i] Nela, os autores analisaram 4 casos de suicídio, dentre os quais 3 se referem a mulheres vítimas do patriarcado. A classe social é o menos importante nesses casos, pois o peso recai muito mais sobre o gênero. No entanto, foi importante advertir que o suicídio não escolhe classe social: “Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre os ricos ociosos como entre os artistas e políticos. A diversidade das suas causas parece escapar à censura uniforme e insensível dos moralistas.”[ii]


O primeiro caso refere-se a uma jovem costureira, filha de um alfaiate e que foi prometida em casamento a um açougueiro, “[...] jovem de bons costumes, parcimonioso e trabalhador, muito enamorado de sua bela noiva, que, por sua vez, era-lhe muito dedicada.”[iii] O casal já havia mantido relações sexuais antes do matrimônio, o que não era novidade para nenhuma das famílias. Contudo, após uma celebração na casa do noivo em que não foi possível a presença dos pais da jovem, a situação antes harmoniosa, desmoronou. A jovem passou a noite na casa dos pais do noivo, mas ao chegar à sua casa pela manhã ouviu os maiores impropérios e xingamentos de seus pais que julgaram absurdo o fato de ela ter passado a noite com o noivo.


O escândalo foi tamanho que chamou a atenção da vizinhança. Os autores relatam a tragédia: “O sentimento de vergonha provocado por essa cena abjeta levou a menina à decisão de dar fim à própria vida; desceu com passos rápidos em meio à multidão dos padrinhos que vociferavam e insultavam e, com olhar desvairado, correu para o Sena e jogou-se na água; os barqueiros resgataram-na morta do rio, enfeitada com suas joias nupciais.”[iv] Após dois dias da tragédia os pais foram até a polícia para requisitar uma corrente de ouro, um relógio de prata e outras joias que estavam com a jovem no momento do suicídio. “Não perdi a oportunidade de recriminar energicamente aquelas pessoas por sua imprudência e barbarismo”, relatou Peuchet.


O caso seguinte diz respeito a uma jovem que havia se casado com um homem rico e amante das artes, frequentador dos grandes salões da burguesia, o sr. Von M... Este possuía um irmão que era apaixonado pela cunhada, mas cultivava esse sentimento em segredo. Foi este irmão que procurou Peuchet para narrar o seu ponto de vista sobre os eventos que antecederam o suicídio. Ocorreu que após o casamento o sr. Von M. foi acometido por uma grave doença que debilitou a sua saúde e desfigurou todo o seu corpo. Com o passar do tempo ele foi se afastando das pessoas e não mais frequentava a alta-roda. Em sua paranoia, passou a acreditar que todos os que o visitavam tinham a intenção de cortejar a sua jovem esposa. Tal como descreveu Marx/Peuchet: “O ciúme se nutre das coisas mais insignificantes; quando não sabe mais em que se agarrar, consome a si mesmo e torna-se engenhoso; tudo lhe serve como alimento.”[v]


Assim, a jovem foi privada de sua liberdade pelo marido ciumento que não queria, no seu entendimento, perder o único objeto que possuía. Nesse momento do relato, a observação de Marx/Peuchet é tragicamente assertiva: “A infeliz mulher fora condenada à mais insuportável escravidão, e o sr. Von M... podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa uma parte de seu inventário.”[vi] Fica evidente nesta passagem a analogia crítica entre a noção legal de propriedade e o sentido de pertencimento que o marido possuía sobre a mulher.


Em determinado momento o cunhado, escondido, presenciou uma cena dantesca em que o seu irmão agarrava a jovem esposa pelos braços e gritava com ela, depois lançou-se na cama aos berros, espumando pela boca, fazendo toda uma cena digna dos histéricos. A jovem consegue com muito custo acalmá-lo, relatou o cunhado que permanecera escondido. Era uma cena que provavelmente se repetia cotidianamente. Os autores novamente enfatizam o aspecto jurídico como um dos reprodutores da opressão patriarcal: “É sobretudo nesses casos que se poderiam maldizer as formalidades jurídicas e a negligência das leis, que nada podem tirar das suas praxes calculadas, mormente porque se tratava tão somente de uma mulher, aquele ser que o legislador cerca com as menores garantias.”[vii] A jovem não mais suportou aquela situação e antes que o seu cunhado tomasse alguma providência, pois este já havia planejado junto com amigos uma invasão para resgatá-la, deu fim à própria vida.


O terceiro caso contou com o depoimento de um médico que foi essencial para reconstruir a história que culminou no suicídio. O médico relatou ter sido abordado por uma jovem da alta classe que suplicou que lhe fizesse um aborto. Após o longo pedido, o médico ponderou e decidiu por negar-lhe tal solicitação. Quinze dias depois os jornais noticiam o ocorrido. Segundo Marx/Peuchet: “A jovem sobrinha de um banqueiro parisiense, de no máximo dezoito anos de idade, pupila querida de sua tia, que nunca a perdia de vista desde a morte de sua mãe, deixara-se deslizar para dentro de um regato na propriedade de seus tutores, Villemomble, e havia se afogado.”[viii] O pai do filho da jovem era o seu tio, que os autores chamaram de “covarde sedutor”.


O último caso reportado foi o de um homem que, uma vez afastado de suas atividades, não conseguia mais emprego e “Caiu num profundo desânimo e se matou.”[ix] Ele deixou mulher e duas filhas, de 17 e 18 anos. Pouco antes de narrar esse caso os autores afirmaram: “Entre as causas do suicídio, contei muito frequentemente a exoneração de funcionários, a recusa do trabalho, a súbita queda dos salários, em consequência de que as famílias não obtinham os meios necessários para viver, tanto mais que a maioria delas ganha apenas para comer.”[x] Neste sentido é imprescindível dizer que os suicídios tendem a aumentar em épocas de crise econômica.


Os casos descritos e comentados por Marx/Peuchet são sintomáticos de uma sociedade doentia que insiste em reproduzir a opressão patriarcal, bastante contestada desde então, mas que ainda deixa um rastro de desigualdade, violência e morte. Esse modelo de organização social levou os autores a se perguntarem: “Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.”[xi]


A saída que os autores apontam consiste em uma reforma total da ordem social, pois qualquer tipo de tentativa de mudança que não for esta, será inútil: “As relações entre os interesses e os ânimos, as verdadeiras relações entre os indivíduos ainda estão para ser criadas entre nós inteiramente, e o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral [...].”[xii]


“Sobre o Suicídio” evidencia a necessidade premente em lidar com um tema que requer a máxima atenção – em que não se deve culpar a vítima, mas trazer à tona um contexto histórico opressivo que leva as pessoas a um último ato de desespero na tentativa de extrair uma dor, um sofrimento que lhe é insuportável – para então poder propor uma reformulação plena da sociedade afim de que esses atos sejam, se não evitados, ao menos arrefecidos.


Link da imagem: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/sobre-o-suicidio-129


Referência Bibliográfica


MARX, Karl. Sobre o Suicídio. (Tradução: Rubens Enderle e Francisco Fontanella). São Paulo: Boitempo, 2006.


NOTAS


[i] Segundo Michael Löwy: “Marx imprimiu sua marca ao documento de várias maneiras: na introdução escrita por ele, na seleção dos excertos, nas modificações introduzidas pela tradução e nos comentários com que temperou o documento. Mas a principal razão pela qual essa peça pode ser considerada expressão das ideias de Marx é que ele não introduz qualquer distinção entre seus próprios comentários e os excertos de Peuchet, de modo que o conjunto do documento aparece como escrito homogêneo, assinado por Karl Marx.” (MARX, 2006, p. 14).


[ii] MARX, 2006, p. 24.


[iii] Ibid., p. 29.


[iv] Ibid., p. 32.


[v] Ibid., p. 36.


[vi] Ibid., p. 37.


[vii] Ibid., p. 40.


[viii] Ibid., p. 48.


[ix] Ibid., p. 49.


[x] Ibid., p. 48.


[xi] Ibid., p. 28.


[xii] Ibid., p. 29.

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