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A PICARETAGEM ACADÊMICA E A POMADA MÁGICA



Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, apresenta um tipo de genealogia curiosa, ao menos quando fala da origem das ciências humanas e sociais. Segundo ele, elas nasceram como um desdobramento daquilo que foi chamado no século XVIII de medicina social, ou seja, sendo uma extensão de uma forma de saber que tinha como objetivo curar doentes, pessoas em crise ou grupos inteiros em situações de risco ou com algum tipo de desiquilibrio populacional, demográfico ou coisas do gênero. As ciências humanas e sociais, segundo Foucault, entram também nessa esfera, continuando com o mesmo espírito prático, embora com algumas diferenças em relação ao método e aos objetos de estudo. O núcleo da crítica foucaultiana, no final das contas, envolve aquilo que chamou de intelectuais universais, em sua microfísica do poder. Com sua aura pretensiosa, e seu compromisso “medicinal”, esses intelectuais tinham como meta a cura, mas não apenas do corpo, como também da mente. É preciso curar a doença dos iludidos, o sangramento dos idiotas e as feridas dos estúpidos. Através de nossa cirurgia metodológica, aplicada com cuidado e pretensão, realizamos um verdadeiro milagre, ao fazer com que os cegos enxerguem a luz, fugindo, ao mesmo tempo, dos becos escuros da ignorância.


Sempre nos apresentamos, e isso não tem nenhuma surpresa, como defensores das minorias, além de vários grupos excluídos e em situação de risco, embora não seja tão simples assim, já que por trás das cortinas do teatro acadêmico existe uma vaidade fora do normal, um tipo de líquido gosmento que escorre por baixo do pano e contamina tudo ao redor. Sem dúvida ajudamos, e estendemos a mão aos que precisam, mas pedimos algo em troca, afinal nada é de graça. Saímos em defesa dos que precisam, mas reconhecendo, ao mesmo tempo, o quanto as pessoas lá fora não têm autonomia sem nós, sem nossos conceitos, sem nosso método, sem nossas estruturas e sistemas. Sem nós, elas não pensam, elas não vivem, mas apenas reproduzem mecanicamente formas internalizadas de comportamento, como se fossem máquinas sem vida, nada mais do que carcaças vazias vagando sem consciência. Ou seja, estendemos a mão, ajudamos muitos lá fora, e isso é um fato, mas desde que continuem em um vínculo de dependência epistemológica, desde que reconheçam nossa existência... NOSSA NECESSÁRIA EXISTÊNCIA. Nossa ajuda ao outro quase sempre é acompanhada por essa dívida que é feita, desse vínculo que não consegue ser quebrado. Em outras palavras, "eu vou te ajudar, mas desde que você use meus conceitos, meus métodos, minha linguagem, caso contrário não posso reconhecer sua autonomia, sua criatividade ou mesmo sua inteligência. A inteligência é definida conforme meus critérios, envolvendo parâmetros definidos por mim e por meus amigos esclarecidos. Se é inteligente falar de “capitalismo”, “sistema”, “sociedade”, “indústria cultural”, se é inteligente falar de coisas por trás da experiência, manipulando cada centímetro dos seus contornos, logo você não tem muita escolha".


Esse vocabulário nos bastidores, além de toda uma linha de raciocínio previsível, envolvendo temas, conceitos e teorias, é o que eu chamei aqui de dependência epistemológica. O outro, caso se coloque na tarefa de pensar, precisa refletir nos meus termos, dentro dos meus parâmetros, já que eu sou a matriz da racionalidade, o “colonizador” esclarecido que liberta as mentes primitivas. Nosso projeto, nesse caso, envolve sempre uma atitude civilizacional, já que no fundo é APENAS um favor realizado aos indivíduos sem rumo, sem destino. O problema é o fato desse gesto partir sempre de um critério epistemológico, em que as pessoas lá fora são representadas como criaturas ignorantes, iludidas, sendo esse o motivo de fazerem o que fazem. Como resultado, o papel do cientista social é esclarecer esse público, fazendo com ele reconheça as forças desconhecidas que comandam suas ações e adoecem seus corpos. Esse movimento nos leva ao conceito de picaretagem epistemológica. Nós não apenas criamos a crença de que existe lá fora um inimigo todo poderoso e invisível aos olhos destreinados, manipulando cada centímetro do tabuleiro social, como também vendemos a solução do problema, ou seja, o remédio que pode livrar o povo de sua doença epistêmica, de sua ignorância. Na verdade, existe uma terceira manobra em jogo, já que além de vender a solução do problema inventado, também deixamos claro que a única alternativa possível é a nossa.


Essa é a mesma atitude do vendedor da “pomada mágica”, daquele sujeito que vai de cidade em cidade vendendo seu produto milagroso. O segredo não é apenas vender o produto, como se fosse uma simples e inocente transação. Antes de qualquer outro tipo de manobra, antes mesmo de apresentar as características incríveis do nosso produto, é preciso fazer as pessoas acreditarem que a doença é real e que apenas a nossa pomada é capaz de destruir completamente o problema. Elas precisam acreditar que vivem em um mundo de ilusões, que são manipuladas, que não são “elas mesmas”, que não encontraram “suas essências”. Elas precisam acreditar que tem algo corrompendo suas almas, ou seus corpos... algo que as afasta de quem “realmente são” e como “realmente devem ser”. Nessa retórica quase religiosa, elas precisam acreditar que estão doentes e que precisam de ajuda... DA MINHA AJUDA e de mais ninguém!!!!


Então, caro leitor, fique sabendo que nesse exato momento você está preso em uma amarra de ilusões, sem nem perceber o que acontece ao redor. Infelizmente você vive numa ficção, acreditando que decide por conta própria, quando, na verdade, é só uma marionete comandada por forças malignas. Mas não se preocupe... seus problemas acabaram!!! Chegou a pomada acadêmica... basta passar três vezes ao dia e tudo vai ser resolvido com rapidez e eficácia. Você quer ter essa mente que eu tenho? Quer se livrar dessa gordurinha epistemológica que impede você de ir além? Se a resposta é “sim”, não tema!!, porque sua solução está ao seu alcance. Aceitamos capital social, econômico ou religioso, podendo parcelar em até 3x sem juros no seu cartão bourdiesiano. Mas lembre... VOCÊ PRECISA DE MIM, VOCÊ PRECISA DO MEU REMÉDIO... SEM MIM, VOCÊ NÃO É NADA, VOCÊ NÃO É NINGUÉM!!!


Referência:


https://jornalistaflavioazevedo.blogspot.com/2019/08/a-picaretagem-e-estimulada-pelo.html

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