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QUAL É O PESO DA VIOLÊNCIA MASCULINA NA VIDA DE UMA MULHER?




A maneira como o ser humano lida com a sua vida não é passível da lógica de um manual de instruções, de regras predeterminadas que ensinem como lidar com o sofrimento ou de como se curar deles; a vida é cruel e não há cura para as dores que ela traz. Assim é delineado o romance “O Peso do Pássaro Morto”, de Aline Bei. Dona de uma escrita que não segue padrões gramaticais, se aproximando muito mais da métrica (sem métrica) poética, Bei retrata a história de uma personagem inominável, começando dos 8 até os 52 anos de idade.


A personagem é lançada no mundo (para uma usar expressão heideggeriana) a partir dos 8 anos de idade, quando convivia harmoniosamente com os seus pais, tendo como vizinho seu Luís, benzedeiro, homem simples, a quem os pais a levavam quando adoecia e que “na hora de benzer é reza de índio,/a voz do seu luís fica/Grave/parece que tem um cacique dentro dele/cantando pra eu/Sarar.”[i] A doença retorna em outro momento, mas a cura é realizada no instante do ato. É assim que a menina de 8 anos enxergava o mundo a sua volta enquanto se divertia com a sua amiga Carla que frequentava a mesma escola que ela.


A leveza desse momento da vida é rompida pelo peso da morte da amiga. Ainda sem compreender o que é a morte, ela pergunta para a sua mãe enquanto esta fritava um bife para o almoço: “– o bife/é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que/ farão com a sua carne./quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos./mas tentamos.”[ii] A resposta da mãe é a voz do Outro (leia-se “grande outro”, na perspectiva psicanalítica) que constitui o sujeito, visto que nosso “Eu” é formado inicialmente pelo discurso do Outro, pelo que ouvimos desse Outro e não por nós mesmos. Por isso a menina concluiu sem metáfora a fala da mãe da seguinte forma: “almoçamos a morte e foi calado.”[iii] O significante da morte como um pedaço de carne que foi ingerido, trazido para dentro de si, acompanhará ao longo da vida a história da personagem. A morte da amiga é o primeiro momento em que ela constata que “A cura não existe”,[iv] título da sua redação na escola, o que contraria todo o misticismo que acreditava haver no mundo quando via seu Luís fazer a sua reza.


Aos 17 anos sua amiga Paula a acobertaria dos seus pais ao justificar, caso necessário, que ela passara a noite na casa dela [Paula], enquanto na verdade ela se beijava com Pedro que, embora não se considerassem namorados, “ficavam” com certa frequência. A força do desejo da personagem aos 17 anos é assim descrita: “beijando aquela boca macia/minha língua cansada sem querer parar/de lamber o menino/mais lindo que meus olhos já/viram, a vontade era de/engolir o/Pedro e guardá-lo dentro pra toda vez que eu ficasse/triste lembrar que ele/existe em mim.”[v] Ressurge aqui a fase oral expressa no desejo de ingerir alguém para não esquecê-lo, assim como ela fizera com Carla. Mas um acontecimento trágico destrói completamente esse desejo.


Ao ver uma foto tirada por terceiro de uma cena libidinosa (um beijo triplo) que ocorreu em um show de Rock envolvendo ela, Paula e um desconhecido, Pedro mudou sua postura radicalmente e ao encontrá-la gritou: “– puta./eu gostava de você, sua/P u t a!”.[vi] Ela tentava explicar que tinham sido levados pela bebida e que ainda gostava dele, mas não isso não o acalmou. Nesse momento a autora revela como age uma sociedade patriarcal, baseada na masculinidade tóxica, na emissão de um discurso que exige um posicionamento severo do homem diante de uma atitude como essa proveniente de uma mulher. Na escola os colegas diziam em tom de escárnio: “muuuuuuuuuuuuuu quando ele passava,/muuuuuuuuuu desenhado em bilhete”.[vii] Além disso, “escreveram/Pedro Corno/ocupando a lousa antes da professora chegar,”.[viii] A denúncia feita pela autora não exime Pedro ou quem quer que seja da responsabilidade perante os seus atos, mas traz à tona o pano de fundo de um discurso opressor que estimula uma atitude violenta por parte do homem contra a mulher para que aquele “salve” e “honre” a sua masculinidade.


Ao final essa violência foi praticada. Esse momento é narrado de forma crua pela autora, um trauma que aquela garota sem nome, personificando várias mulheres, levará consigo pelo resto da vida. Aos 18 anos ouve o médico dizer: “– é um menino.”[ix] A sua relação com o filho, cujo aborto foi um pensamento constante durante todo o período de gestação, é marcada pelo distanciamento, pela ausência de diálogo e de intimidade. Lucas cresceu perguntando pelo pai, mas ela não lhe dizia a verdade, sentia que não poderia. O elo entre ela e Lucas era Bete, a babá, que apareceu subitamente na sua vida.


Com Bete, Lucas brincava, sorria, mas com ela isso não acontecia. Lucas lembrava o Pedro, e isso a levava de volta ao momento traumático, por isso ela não conseguia estabelecer uma relação afetiva com o filho, antes era uma rejeição, quase uma indiferença, ainda que inconscientemente ela pudesse desejar estar mais perto, conhecê-lo e permitir que ele a conhecesse.


À medida que Lucas crescia ela se tornava mais preocupada com o tipo de homem que ele viria a ser. Ele se tornaria igual ao pai, um estuprador? Em certo momento foi-lhe relatado que Lucas e alguns amiguinhos matavam pássaros, utilizando estilingue e os colocavam em caixas de bis, preenchiam os espaços com flores, convidavam algumas pessoas e realizavam um funeral. Angustiada ela pensou: “isso é tudo/menos coisa de criança./isso/é o lugar onde nasce/a dor./isso é/tudo o que destrói a possibilidade de um mundo/um pouco menos cruel/com os mais fortes abusando dos/mais fracos e o pai do lucas/dentro dele/e o pai/do lucas/dentro de/mim.”[x]


O tempo passa, Lucas se torna adulto e vai seguir a vida dele o mais afastado possível da mãe, estudando e morando em outro Estado. Ela, por sua vez, adota um cachorro de rua e o nomeia Vento. O cão, não mais de rua, será tratado com o carinho que Lucas, seu próprio filho, não recebeu. O trauma decorrente do estupro que sofreu impediu que ela desse carinho para Lucas, esse afeto foi todo direcionado para Vento, um cão que tinha sido marcado pela violência e pelo abandono. Vento soprou amor na sua vida, representando uma relação afetuosa que ela não tivera com Lucas.


Lucas apresentou-lhe Joana, sua noiva. Ao contrário de Bete, Joana representava o abismo, pois além de estar grávida, pretendia ter o filho na Itália, ao que interpretava como um distanciamento ainda maior entre ela e Lucas. Essa distância de fato aconteceu e o estopim foi quando ela opinou sobre o nome do filho deles: Carlos Eduardo: “não gostei do nome,/muito longo pra ser de/criança/e ele passaria um bom tempo/sendo criança,”. Para quem nunca foi realmente presente na vida do filho, esse tipo de intervenção não foi bem aceita por Lucas e nem por Joana.


Aos 49 anos, sem ter realizado o seu sonho de ser aeromoça, sem ter tido (se pode supor) qualquer tipo de relacionamento após o abuso, sem ter sido “a mãe” do Lucas e ainda com medo de borboletas (algo que remetia à sua infância e à sua amiga Carla), se mudou para uma antiga casa, mais próxima do seu trabalho, junto com Vento. É naquela casa, enquanto a limpeza, como se limpasse a sua alma, que ela percebeu que a sua libido ainda existia: “varrendo o quintal,/a casa e/demorava, pelo tamanho dos cômodos./não me importava, dançava com a vassoura e uma vez o cabo/me lembrou um encaixe que/eu gostei./encostei num canto./rocei de baixo/pra cima/até sentir as pernas/bambas, no peito/um vulcão./(meu deus)/eu estava viva,/ainda.”[xi] Neste momento de paz e tranquilidade ela se permitiu desejar novamente e não associar esse desejo com o momento traumático que passou. Houve um alívio e a possibilidade de que a vida poderia ser diferente do que foi até o momento. Contudo, como dito no início, Aline Bei enfatiza a crueldade da vida, assim como a sua imprevisibilidade: Vento é atropelado e morre.


O momento após o atropelamento de Vento é profundamente marcante. Logo em seguida a narradora assume o comando da narrativa: “ela caiu no sono./vomitou dormindo/e não acordou./sonhava de novo com/a chegada/pra ver o Vento morto/só que dessa vez ele não estava morto/o portão/não estava aberto, no sonho/o Vento estava em casa esperando e isso a deixou tão/feliz que ela não acordou, não pôde,/nem o gorfo conseguiu e então/nunca mais.”[xii] Para a psicanálise o sonho representa a realização do desejo. Em seu sonho de morte ela realizou o seu desejo de manter o Vento vivo, o Vento que ainda soprava amor.


Em “O Peso do Pássaro Morto” o que pesa é a violência masculina sobre a mulher, o trauma que não pôde ser superado. O peso é, portanto, a própria morte, a morte simbólica e a morte real do pássaro, o pássaro-mulher, aprisionado em sua casa, na sua gaiola psíquica por conta de um sofrimento incurável e uma dor insuportável.


Aline Bei escreveu um livro intrigante, ao mesmo tempo denso e necessário, que abre para inúmeras reflexões que esta breve resenha não é capaz e nem tem a pretensão de comportar, mas apenas apresentar uma das diversas possibilidades de leitura.


No epitáfio daquela mulher inominável, que representava tantas outras mulheres, constava: “a cura não existe.” Se a cura não existe, então o que há na perspectiva do romance é a noção de que a vida só se faz vivendo. Ao final da história algo acontece que reitera a noção de que a vida, em seu sentido mais amplo, continua a se realizar e que o fim não é o fim. Uma leitura imprescindível!


Link da imagem: https://www.amazon.com.br/Peso-do-P%C3%A1ssaro-Morto/dp/8569020236


Referência Bibliográfica


BEI, Aline. O Peso do Pássaro Morto. São Paulo: Editora Nós, Edith, 2017.





[i] BEI, 2017, p. 8.


[ii] Ibid., p. 21. Grifo da autora.


[iii] Idem, ibidem.


[iv] Ibid., p. 35.


[v] Ibid., p. 47.


[vi] Ibid., p. 52.


[vii] Ibid., p. 53.


[viii] Idem, ibidem.


[ix] Ibid., p. 61.


[x] Ibid., p. 85.


[xi] Ibid., p.146.


[xii] Ibid., p. 158.

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