Por João Mendes*
É preciso discutir a responsabilidade poética e, talvez, imaginar o Pierrot nefasto.
Não é difícil encontrar poetas e prosadores bradando suas vozes nas redes sociais. E, de antemão, digo que isso é bom. A arte democratizada, ganhando visibilidade, sendo compartilhada tantas e tantas vezes.
Afinal, não há mal algum quando todos podem trazer os delírios dos versos ao toque. Desmistificando a imagem dos poetas, dos escritores no alto de seus castelos, da elite literária. Porém, o que para mim se torna preocupante é o discurso.
Inúmeras vezes, pude me deparar com arranjos que diziam: “Não se atire de cabeça em pessoas rasas” ou “Não gaste seu coração bom com um mundo tão cinza”. Na primeira leitura, não parece haver nada além de versos inofensivos, frases sobre autoestima e valorização.
Mas, quando podemos passear pelos comentários, percebemos que a maioria das pessoas se identifica com a imagem do coração bom, na consciência profunda, no peito aberto, com o time das pessoas boas demais, sensíveis demais ou profundas demais para um mundo nefasto.
Afinal, onde está o outro nesses versos?
Pressupondo que existam dois lados, o das pessoas de bom coração, profundas, intensas e o das pessoas de peito fechado. Então, onde estão aqueles que assumem o quão ruins podem ser com os outros? Porque, relendo os comentários, penso que todos acreditam estar no posto da vítima, mas nunca, nunca, coberto pela figura nefasta do algoz.
Por quê?
Os versos estão sempre apontando a falha do outro e tirando, desse mesmo outro, qualquer profundidade que possa existir. No discurso que tende a tratar o “eu” como parâmetro para todas as outras medidas, ergue-se a estátua martirizada do pobre coitado, que carrega sentimentos doces demais para um mundo tão trágico. Não há espaço para reconhecer o pior do “eu”?
É o outro.
O outro não sente como eu sinto.
O outro não sabe provar sentimentos intensos.
O outro não possui um coração leve como o meu.
O outro é raso.
É o outro.
Magoar? Ferir? Não! Nada disso está incluso dentro do eu.
É sempre o outro.
Afinal, o que acontece com uma sociedade que não sabe reconhecer o pior de si? Porque, até onde sei, quanto mais se acredita ser incapaz de magoar alguém, mais perto se está de ferir o outro. Se não reconhecermos o pior de nós, como aceitaremos que um dia fomos o pior para os outros? Se, porventura, acreditarmos sempre na imagem sensível do peito aberto, então a única a saída lógica é buscar justificativas para os erros que cometemos.
Não assumir, não entender, sequer trabalhar no erro. Porque nosso coração é bom, o outro que erra. Continua-se acreditando no conceito maniqueísta, pessoas boas de um lado e pessoas ruins do outro. Quem é bom, é bom. Quem é mau é mau. Penso também nos tantos que, ao perceber o quão mesquinhos podem ser, desaprendem a lidar consigo mesmo.
No final, estamos todos apontando dedos. Defendendo nossos sentimentos bons demais para esse mundo, não é? Mas, até quando?
Venho a pensar nos arquétipos, na Commédia Dell’Art. No Pierrot apaixonado, ali, derramando suas lágrimas. No Arlequim saltitante, no Pantaleão avarento, nos enamorados. Quando as trupes realizavam seus espetáculos de rua, cada personagem já tinha sua personalidade definida, confinada sob as máscaras. O Pierrot jamais abondaria o choro, os enamorados jamais se tornariam mesquinhos e o Pantaleão nunca viria a conhecer um sorriso sincero. Vivia-se debaixo do personagem por toda uma vida.
Quem era bom, era bom, quem era mau, era mau. E assim era durante toda jornada sobre os palcos. Não destino esse texto a todos os poetas, apenas aos que parecem negligenciar as dimensões humanas. Todo verso, toda palavra pesa.
Talvez seja a hora de enxugar os prantos do Pierrot, imaginá-lo não só como a figura sofrida dos palcos, mas como alguém que poderia entregar o outro ao choro. Talvez seja a hora de aprender o pior de nós e corrigir, discutir a inteligência emocional, ao invés de esconder-se em versos de bons sentimentos frente ao mundo hostil.
Talvez seja hora de imaginar o Pierrot nefasto.
* João Mendes. Escritor baiano. Estudante de cinema e teatro. Autor de "Aos trilhos que me atravessam".
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