Gilmara Silva de Oliveira*
Você já parou para contar quantas pessoas da sua família, entre todas as gerações materna e paterna (avó, bisavó, tataravó, mãe, bisavô, irmãs e irmãos, primas/os, tias/os, sobrinhas/os...) tiveram a oportunidade do acesso, permanência e saída concluída nas instituições de ensino-aprendizado, desde o básico (fundamental, médio), técnico ao superior?
Feita essa contagem, você já se perguntou por que em meio a uma geração com mais de 20 pessoas[1] que compõe a sua família consanguínea, só você e mais umas duas ou três alcançaram o título de “formada” pelo ensino médio, técnico ou graduação em alguma área do conhecimento?
Paralelo a esses questionamentos, ainda trago: as pessoas, desde as mais próximas às mais distantes do seu convívio já se surpreenderam com o fato de você ter conquistado algum ou alguns desses títulos?
Pois bem. Vamos conversar brevemente sobre estes pontos porque concordo com o ícone da luta nacionalista negra Malcolm X quando disse que temos que mudar nossos pensamentos a respeito uns dos outros/as, nos ver com novos olhares e, especialmente nos aproximar de modo caloroso.
Neste sentido, o que trago aqui é o meu contínuo compromisso epistemológico, ético, político, simbólico e afetivo, tanto com a minha própria trajetória de vida e da minha família, quanto de outras pessoas e grupos sociais quais tiveram e têm suas histórias marcadas pela compulsória seletividade de acesso à educação superior - sem falar a outras políticas públicas.
E esses aspectos ao mesmo tempo que me sangram, me potencializam porque interpreto como o que a Psicanalista Neusa Santos Souza (1983) refletiu: é um processo de tornar-me negra, ou seja, uma descoberta de ser negra para além da constatação do óbvio, é saber ser negra a partir da experiência de muitas vezes ser massacrada pela minha identidade, confundida com as minhas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas, mas também e, sobretudo, a experiência de me comprometer a resgatar a minha história e recriar as potencialidades (pág. 17), sem desconsiderar minha ancestralidade.
Eu sempre fui estimulada a estudar e a minha avó paterna é uma referência importante neste incentivo, porque mesmo sendo uma vítima do racismo e sexismo estruturais, violada do direito ao acesso à escola, buscou garantir a minha permanência e de todos os filhos/as no espaço escolar. O esforço constante vislumbrava viabilizar melhores condições de vida a partir dos estudos.
Acontece que para além do mérito, enquanto aspecto perversamente justificado pelo esforço individual, vivemos em um país cujo contexto socioeconômico, político e cultural é marcado por processos de desigualdades, quais inviabilizam, paralisam e interditam as possibilidades de oportunidades para determinados grupos em detrimento de outros, e demarca quem pode ou não alcançar ascensão social.
Trago o termo ascensão social pelo entendimento da Psicanalítica Neusa Santos Souza (1982, p. 19), que em suas palavras é “um movimento pelo qual um agente ou grupo social, realizando uma possibilidade de ascensão social, muda de uma classe social (ou de uma camada de classe) para outra considerada superior, sendo classe social entendida como a estratificação em termos de posição nos processos sociais de produção, dominação e ideologização, isto é: se tomará em conta não só a posição na instância econômica (compra ou venda da força de trabalho), mas também a relação dos agentes com o poder (lugar no aparelho jurídico-político do Estado) e com os emblemas de classes (valores éticos, estéticos etc)”.
As marcas desiguais quais me refiro são impostas pelo fato de vivermos em uma sociedade sustentada por concepções e práticas estruturalmente racista, sexista, transfóbica, dentre outras violências correlatas que entrelaçam o processo do desenvolvimento brasileiro. Ou não te causa estranhamento que em pleno século XXI os quesitos cor ou raça, por exemplo, persistem em ocupar espaço central no diagnóstico e medidas de combate às desigualdades no Brasil (IBGE, 2019)?
Nesse citado Informativo Demográfico e Socioeconômico há indicadores que reiteram o quanto a nossa pátria amada idolatrada (principalmente por quem se beneficia do racismo) produz e reproduz maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social voltadas para as populações de cor ou raça preta, parda e indígena (IBGE, 2019, p. 1). Referente aos indicadores educacionais, o estudo demonstra a ampliação do acesso destes grupos desde os anos 1990, no entanto, é predominante no pior cenário de analfabetismo em relação as pessoas brancas.
Ainda segundo consta nesse documento, a ocupação no alto índice de analfabetismo torna as populações pretas, pardas e indígenas vulneráveis a vivenciar os impactos desiguais em relação a outros fatores como a renda e ao mercado de trabalho funcionando, no meu entendimento, como um efeito dominó de precariedade e que derruba a ideia de que apenas o esforço individual é suficiente para alcançar a ascensão social.
Esses grupos predominantemente são condicionados a sobreviver com baixa renda ou dos benefícios e auxílios governamentais, a exemplo do Programa Bolsa Família e mais recentemente do auxílio emergencial em função da pandemia pelo covid-19 que, inclusive, já sofre vetos[2] para as mulheres solteiras por parte do atual governo opressor. E adivinha quem exponencialmente sofre com essa articulação do racismo e sexismo? Se pensou as mulheres negras infelizmente você acertou.
Evidentemente não gostaria de ver nenhuma mulher vivendo essa realidade. Acontece que em uma sociedade CISheterocapitalista[3] não haveria grupos privilegiados se não fosse a existência de outros em desvantagens. Então, entre as 40 milhões de pessoas cadastradas na época para levantamento das condições estabelecidas pelo governo federal para recebimento do auxílio emergencial, as mulheres negras ocupavam 62,6% dos 71,5% da população negra inserida no Cadastro Único[4].
Esses dados são recentes, mas muito antes dos anos 2000 pensadores/as já falavam sobre os impactos negativos do racismo nas vidas de pessoas negras, principalmente a partir dos anos 1970 pelo Movimento Negro Brasileiro. São, portanto, indicadores resultantes da sociedade escravista, que transformou o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (SOUZA, 1982 apud IANNI, 1978, p. 19).
É importante concordar com esta escritora que nas sociedades de classes multirraciais e raciais como o Brasil, as pessoas negras lutam constantemente contra a maré da dominação e seu projeto de ascensão é produzido pela estrutura das relações raciais que ora vai impor barreiras, ora vai abrir brechas para realização parcial dos seus sonhos. Não é à toa que muitas vezes somos compulsoriamente condicionados/as a escolher entre estudar ou trabalhar, viajar ou juntar a grana (quando tem) para pagar as contas, dentre outras situações que nos matam material e simbolicamente, visto que impõe sentimentos de inferioridade e impotência - os homens negros pobres que o digam!
Esse contexto é relevante para que, tanto os/as desavisados/as com a conveniente amnésia histórica quanto as pessoas que por diversos motivos ainda desconhecem o entrelaçamento racista das desigualdades sociais na formação da sociedade brasileira, não mais justifiquem a conquista de um diploma exclusivamente pelo mérito e esforço individual.
Essa é uma armadilha aliada com a histórica responsabilização individual e das famílias pela sua precária condição. É uma armadilha que reitera o âmbito do privado como único espaço possível de ultrapassar os limites sociais. É a velha história de que basta ter fé, ser otimista e correr atrás do prejuízo que tudo vai dá certo, quando na verdade esse pensamento colabora com a desresponsabilização do Estado Brasileiro do papel de promover políticas públicas justas e equânimes para o público em desvantagens sociais .
Você percebe por que não se trata meramente de um diploma e o quanto esse documento ganha um significado e sentido simbólico/político a depender da realidade de vida de quem o conquista? É a representação do quanto a nossa alma ainda precisa ser lavada por conta de uma dívida histórica de parte da sociedade brasileira beneficiada com racismo com a população negra - já diz o Bloco Afro Ilê Aiyê desde 1974.
Essa discussão abre espaço, portanto, para repensar com afeto o lugar social de quem se “forma” em relação a família, aos amigos/as, vizinhas/os que não conseguiram acessar e concluir o ensino médio, muitas vezes nem o fundamental que dirás o ensino superior. Quantos deles e delas tiveram a opção de não trabalhar e dedicar tempo para os estudos? Lembra da contagem que você foi convidado/a fazer no início da nossa conversa? Percebe os impactos das desigualdades sociais, raciais, de gêneros e as injustiças que atravessam a sua vida e da sua família, afetada ao longo da história pelas barreiras racistas e sexistas produzidas?
Dentro dessa história toda ainda é imposto pelo racismo o desafio de equilibrar a felicidade pela conquista parcial (no caso o diploma como um aspecto de cobrança ancestral) com o envaidecimento do ego e o custo emocional da sujeição e negação da identidade histórico-existencial do negro para não minar o orgulho nem desmantelar a solidariedade entre seu povo (SOUZA, 1982), conforme a autora reitera sobre o negro no contexto da sociedade escravista:
“Enquanto exceção, “confirmava a regra”, já que seu êxito não trazia como consequência uma reavaliação das condições de possibilidade do negro enquanto grupo, nem uma mudança da sua posição na ordem social vigente. Como exceção perdia a cor: “deixa de ser “preto” ou “mulato” para muitos efeitos sociais, sendo encarado como uma figura importante, ou “grande homem”...Vê-se assim compelido a desfigurar-se material e moralmente [...] e em todas as circunstâncias sujeito a dar provas ultraconvincentes de sua capacidade de ser [...] para afirmar-se socialmente” (SOUZA, 1982, p. 23).
Ler essas palavras me faz compreender que a conquista de um diploma também se configura como um retorno social e de família, já que em alguma medida, faz com que sejamos cobrados/as tanto pela família quanto pelas pessoas que direta ou indiretamente acompanham o nosso processo de luta, as idas e vindas para a escola, faculdade, universidade e pela condicionante de que trabalhar é a primeira opção no contexto das famílias pobres, em algum momento questionam o fato de não ter um “bom” emprego, viver pagando aluguel, dentre outros exemplos, que até de forma inconsciente subjugam a sua trajetória.
Outro ponto que trago nesta reflexão são os elogios recebidos, que te colocam em destaque, mas é importante não perder de vista a capacidade de questionar, visto que ser comumente qualificada como inteligente e esforçada/o não te torna melhor que a sua família, uma vez que a mesma é atravessada por processos de desigualdades que a impediu de também acessar os mesmos espaços acessados por você.
Então, o que me estimula diante deste contexto é a possibilidade de ampliar o conhecimento, seguir adiante sem perder as perspectivas e humildade, mobilizar e potencializar o meu povo para que dentro das suas realidades e oportunidades, se percebam como transformadores/as das suas histórias, assim como me oportunizaram essa auto-percepção e desejo, iniciada com a minha avó paterna.
Portanto, o diploma com o título de Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia impõe para a sociedade brasileira a reinscrição na história/ um documento antes negado, negligenciado, roubado/ é uma dívida cobrada pela minha ancestralidade/ é o Poder!/é o Poder da fala e da escrita/é a retirada da máscara de Tia Anastácia/Para que racistas entendam que se seu projeto para a vida do meu povo é morte/Para mim o movimento é por um projeto de vida empoderada!/e se conhecimento é poder/já diz o Ilê Aiyê/eu quero esse Poder também/não para massacrar e violentar mentes e corpos negros/mas para ser reflexo positivo de que é possível reconstruir a nossa história/Por minha avó que teve os estudos roubados pelo trabalho infantil/a nossa alma tem que ser lavada!/pela minha mãe que por muito tempo esfregou o chão de brancos/a nossa alma tem que ser lavada/pela minha filha que me ensina a ver o mundo diferente e alimentar a esperança de que dias melhores virão/a nossa alma tem que ser lavada/não é só um diploma/é cobrança ancestral/ Não esqueça isso!
Com essa poesia de autoria própria dou pause nesta conversa.
* Assistente Social. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social/UFBA. Pesquisadora de assuntos relacionados ao racismo, transfobia, direitos, movimentos sociais trans, descolonização do conhecimento e do saber. Conselheira voluntária do Curso Popular de Pré-vestibular Quilombo do Orobu. Escritora de Palavras-navalha e doçuras. E_mail: silvagil86@gmail.com. Instagram: @gilmara.silva86
Fonte da imagem: http://www.portadiploma.com.br/canudo_01.html
Notas
[1] Esse quantitativo tomo como base a minha família consanguínea.
[2] Veja em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/29/bolsonaro-veta-projeto-que-priorizaria-auxilio-emergencial-a-mulher-provedora>. Acesso em 03-08-2020.
[3] Procure saber sobre o uso do “CIS” com Viviane Vergueiro; Ariane Senna; Thiffany Odara; Bruno Santana; Keyla Simpson; Jaqueline Gomes de Jesus.
[4] Veja sobre esses dados na publicação de Luisa Fragão dá Revista Fórum no Portal Geledés <https://www.geledes.org.br/mulher-negra-com-renda-mensal-de-r-285-e-perfil-de-maioria-no-cadastro-unico/>. Acesso em 03-08-2020.