“VOCÊ TEM INVEJA DA MINHA COR!!”: O Orgasmo Ético e a Chegada dos Guerreiros da Justiça Social
- Thiago Araujo Pinho
- 13 de ago. de 2020
- 7 min de leitura

Nessa semana a internet se comoveu com o caso do Motoboy que foi humilhado por um morador (branco) de um condomínio de luxo em São Paulo. Como resultado, as cenas viralizaram em uma velocidade fora do comum, inundando a internet com comentários indignados, além de manifestações de apoio ao rapaz. Apesar da polêmica, e de todo o debate envolvido, esse não foi o único exemplo de algo assim, muito pelo contrário. Um tipo estranho de fenômeno aparece no horizonte, uma certa tendência antiga nos bastidores da internet, embora eu tenha percebido apenas essa semana, depois de refletir um pouco sobre algumas histórias. Como vocês já sabem, vários homens brancos brotaram dos noticiários e grupos de WhatsApp nos últimos tempos, deixando escorrer o veneno ácido e ressentido do racismo. De maneira geral, essa figura branca defendia com orgulho e arrogância sua cor de pele mais clara, humilhando, no processo, pessoas negras, como funcionários públicos e entregadores de aplicativo. Sem dúvida, esses casos são absurdos, repugnantes, e ninguém pode negar isso, principalmente eu, um professor de esquerda, mas é curioso a forma como as notícias foram consideradas, além da maneira como viralizaram. Segundo Žižek, um filósofo marxista contemporâneo, a ESQUERDA LIBERAL é definida como aquela que reduz problemas complexos a problemas de caráter, ao mesmo tempo que se alimenta com uma sensação de superioridade ética, o que nos Estados Unidos chamam de Social Justice Warriors (Guerreiros da Justiça Social). Esse tipo de esquerda ganha cada vez mais território nas disputas políticas, além do próprio universo acadêmico, principalmente com o avanço das redes sociais, mas não sem causar estragos graves por onde passa.
O conceito de privilégio branco (White Privilege), presente desde a década de 70, jamais foi pensado como um desvio ético, mas como um traço estrutural e sutil nos bastidores da nossa experiência cotidiana. Isso significa que não importa seu caráter, não importa se você ajuda velhinhas a atravessar a rua, ou oferece dinheiro a mendigos na esquina, mas a simples posição que você ocupa em uma dinâmica racial predefinida. O critério do caráter é completamente inútil em uma pesquisa sociológica, da mesma forma que o caráter de um Burguês é irrelevante na análise da dinâmica capitalista. Claro que você, contestador que é, poderia levantar o seguinte exemplo: “Sérgio é um excelente burguês, um ícone no campo empresarial, principalmente por causa de sua consciência ecológica e ética. Além disso, sempre respeitou seus funcionários, além de ser um excelente pai de família e o lider do grupo Unidos pelo Veganismo”. Qual a relevância dessas informações no universo sociológico? ABSOLUTAMENTE NENHUMA.
Durante tempos escravocratas, por exemplo, como é possível ver em filmes como 12 anos de escravidão (2013), várias famílias brancas eram gentis e tratavam seus escravos com “respeito”, embora esse detalhe não tenha relevância nenhuma na forma como o racismo se instalou. O caráter nunca foi um ingrediente em análises genealógicas, estruturais ou mesmo sistêmicas, sendo um traço exclusivo do senso comum e seu entretenimento diário. Quem não gosta de tomar seu café da manhã ou comer seu delicioso jantar diante das notícias absurdas sobre pessoas absurdas, fazendo coisas absurdas e falando para si mesmo: “Que Absurdo!! Onde vamos parar?”. A comida não parece mais deliciosa quando eu entro nesse espaço de entretenimento ético?
Não importa se você trabalha com redes, estruturas ou sistemas, não importa se sua abordagem é estruturalista ou fenomenológica, nós estamos muito além de debates envolvendo o CARÁTER de pessoas malvadas. Se existe uma coisa que conecta todas as tradições dentro das ciencias sociais, apesar de tantas diferenças entre elas, é a complexidade como olham o mundo, a forma como as pessoas e as circunstâncias são consideradas. A obsessão dos Guerreiros da Justiça Social (Social Justice Warriors), quase como se farejassem escorregões éticos pela internet, como se cada deslize alheio fosse acompanhado por um tipo de orgasmo estranho, reforça mais ainda a ideia de que o centro do espetáculo não é o problema em si, mas um campo de autodefinição. De um jeito meio hegeliano, eu não sou eu, ou seja, minha identidade não brota de mim, em algum tipo de reino interno, mas sempre em contraste com outros, de preferência figuras extremas, caóticas ou insanas. Como resultado, esse processo gera não apenas a certeza de quem eu sou, a solidez da minha própria identidade, como também um sentimento de vantagem ética, uma certa sensação de prazer de fundo, o que Žižek chamou de mais gozar, sendo evidente em frases como: “Que absurdo!!”, “As pessoas não tem mais humildade”, “Precisamos de respeito”. Cada frase dessa é acompanhada por um orgasmo especial, por um tipo de prazer curioso. Eu sei que parece estranho, mas o desejo prospera, e muito, nesse campo da indignação, quase como se gostasse de obstáculos. Por esse motivo estranho, nada é tão simples como parece, principalmente quando os Guerreiros da Justiça Social assumem o controle no espaço público. Esse nível de debate, envolvendo o caráter alheio, apenas empobrece a luta de esquerda, e o próprio campo político, no geral, colocando em risco a nossa compreensão das reais forças que interferem no mundo, ou seja, simplificando uma rede complexa de relações, além de tirar nossa própria responsabilidade sobre o que acontece. Em outras palavras, o problema não se reduz ao extremo do sensacionalismo:
“Olhe aqui rapaz minha cor de pele. Você tem inveja da minha cor!!”
“Cidadão, não. Engenheiro e melhor do que você!!!”
“Você é um analfabeto. Nem sabe ler francês!!”.
Esses casos sensacionalistas, tão populares no Fantástico, no programa da Fátima Bernardes, nos enredos de Malhação, e nas páginas de Facebook e Instagram, jamais interessaram o sociólogo. Nas ciências sociais, ao contrário, nós trabalhamos de outra forma, seguindo por outro caminho, envolvendo “redes”, “estruturas”, “sistemas”, além de outros arranjos. A fixação nos “casos de vitrine”, aqueles sensacionalistas, acabam dificultando o debate. Nesse cenário, tudo é transformando, mais uma vez, em um problema de caráter, em uma disputa inocente entre bondosos e maldosos, entre pessoas de bom coração e aquelas corrompidas, quando o verdadeiro problema passa a quilômetros de distância de debates individuais.
Um outro exemplo foi a respeito do menino Miguel que faleceu. Muitos moralizaram o acontecido, sugerindo que a patroa (mulher branca e rica) era uma criatura egoísta, sádica, estando mais preocupada com as unhas, do que com o bem estar da criança. Essa abordagem moralizante, típica dos Guerreiros da Justiça Social, além de programas de TV e grupos do Whatsapp, é bem evidente na forma como as charges foram construídas, como aquela no ínicio desse ensaio:
CHARGE 2:

CHARGE 3:

Essa moralização do problema deixa escapar o fato de que o acontecimento foi racista INDEPENDENTE do caráter da patroa, mas pelo simples detalhe da empregada ser negra em uma realidade que sempre foi assim. Ou seja, a moralização do problema apenas satisfaz nossa fome por reconhecimento, nosso desejo em marcar território nesse deserto do mundo digital. Por esse motivo, essa tática nada mais é do que um gesto conservador, principalmente porque encobre a complexidade das coisas, focando em desvios individuais e se alimentando com eles, além de impedir a chegada de estratégias eficientes. Nós não precisamos de pessoas com bom coração. Não precisamos de pessoas com mais humildade ou com consciência crítica. Não precisamos de pessoas que respeitem outras ou que tenham mais empatia... o ponto nunca foi esse. Precisamos de novas relações materiais, de um novo arranjo de jogo, de um novo campo de disputas. Eu não tenho um privilégio branco porque sou mal ou egoísta ou desrespeitoso ou ignorante... eu tenho um privilégio branco porque lá fora essa cor de pele tem um valor maior, abre mais portas, cria melhores possibilidades. Eu tenho um privilégio branco porque a pele negra não vale muito no mercado simbólico, por mais bem intencionado que eu seja, por mais que eu queira clamar no Facebook minha bondade interior, por mais que poste todo dia minha indignação com as maldades que vejo no mundo. Eu sou parte do problema, porque o problema nunca foi de caráter.
Como se não fosse o bastante, os Guerreiros da Justiça Social retornam mais uma vez no debate sobre a volta às aulas. Segundo eles, a situação se reduz a duas posições simples: a) Os que defendem o retorno, querendo apenas o lucro de escolas privadas (os Genocidas) e b) Os que são contra o retorno, sendo a favor da vida humana. Mais uma vez percebemos o empobrecimento do debate público, chegando na própria fronteira da infantilização. Esse modo de analisar a realidade não apenas é simplificado, como absurdo. Ninguém em sã consciência acredita que em uma pandemia desse porte, com tantos níveis e implicações, o problema poderia ser resumido ao caráter de alguém. Nós realmente acreditamos que é tão simples assim? Sério? Se nós não conseguimos organizar nossa própria casa, se as coisas saem do controle com tanta facilidade no nosso cotidiano, nós realmente acreditamos que o destino de um país inteiro pode ser resumido em a) pessoas egoístas, de um lado e b) pessoas bondosas, de outro?
Além disso, esse modelo de explicação acaba sendo antiético, já que subestima a inteligência das pessoas e a capacidade que elas têm de entender as circunstâncias. O problema dos Guerreiros da Justiça Social, além de um certo narcisismo de fundo, é o fato de que enxergam a população como se fosse criança, subestimando sua inteligência e sua capacidade de compreender circunstâncias complexas. Nós temos o compromisso de levar ao público os contornos do problema, não importando sua complexidade. Nós devemos a dona Maria do pão essa notícia, assim como a seu Gerson da oficina. Nós devemos a eles uma resposta honesta, transparente e madura. Eles não são crianças, muito menos idiotas... eles sabem que a vida é complexa, já que eles têm a experiência da complexidade no dia-a-dia. Ser de esquerda é carregar essa de rede fundo, é partir da ideia de que a vida não é facilmente enquadrada em fórmulas prontas e interpretações de bolso. Nós não podemos simplificar ao extremo o modo como as coisas funcionam, por mais conveniente que isso pareça.
Meu Instagram: pinho.thiago92
Referência da imagem:
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https://arteemanhasdalingua.blogspot.com/2020/08/atividade-sobre-racismo.html
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