Gabriel Brito e Carlos Henrique Cardoso *
Sou branco de origem pobre, pai e mãe artistas, artesão e artesã. Pesquisei sobre minhas origens: tenho descendência indígena por via materna e paterna; tenho descendência afro por parte de mãe e pai também. Meu falecido pai saudava o maracatu rural em suas telas, minha mãe, as paisagens e naturezas mortas tropicais, praieiras.
Entrar na universidade veio depois que consegui concluir meu ensino médio com ajuda de um grande amigo que pagou um supletivo pra mim. Tenho três filhas, brancas. Estudam em escola pública. Eu, agora no doutorado, estudo temas ligados às epidemias (Zika e Covid-19) e seus impactos sobre a sociedade, sobre diferentes corpos e ambientes.
Dito isto, vamos ao que se tem chamado de branquitude, historicamente. Numa revisão de literatura inicial (ver JESUS, 2014), salta à vista um dado sobre “branquitude” e “branquidade”: é um tema pouco estudado (historicamente falando). No Brasil, foi apenas na década de 2000 que passou a ser sistematicamente estudado, apesar de até em Gilberto Freyre o termo aparecer, ao menos no Brasil.
[...] O branco enquanto indivíduo ou grupo concebido como único padrão sinônimo de ser humano “ideal” é indubitavelmente uma das características marcantes da branquitude em nossa sociedade e em outras... (CARDOSO, 2010, p. 50).
Cardoso (2010) enfatiza o óbvio, mas nem sempre: o rótulo branco (identidade) é mutável e relacional, tal como o preto. Porém, o mesmo Cardoso fala de dois posicionamentos/ações: uma branquidade crítica, que denuncia o racismo; e uma branquidade acrítica, que, por mais que se diga racista ou não, aceita a ideia de superioridade. Ora, foi exatamente o que o presidente Jair Bolsonaro falou: “Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós” ... Porém, ele se referia aos índios e índias do Estado Brasileiro, não à pretas e pretos.
O que aprendemos com esse exemplo é que a branquitude defende o ser humano. Mas, como mostra a literatura sobre o assunto, o “ser branco” equivale ao “ser humano”. Eu arrisco dizer que essa generalização se aplica ao povo do ocidente de origens europeias e do “velho mundo”, pré-colonização, já que outros povos e etnias jamais foram, via de regra, considerados “brancos/humanos/pessoas” (basta lembrar dos judeus, ciganos, pretos, ou brancos “traidores” dos valores brancos, como homens gays, que foram massacrados pelo raci-nazismo[ver Aimé Césaire)]. Na verdade, Cardoso (2010), e Oliveira antes dele (2007), defendem essa mesma hipótese.
Em conclusão: ser branco é mutável. No entanto, buscar nossas origens étnicas e culturais aponta para a descendência europeia e sua autoassociação com a origem da “humanidade” – o ser branco; e para a defesa do que a colonização/modernidade sempre defendeu, bem como seus hábitos, gostos, costumes e epistemologias (música, arte, estética, ciência, filosofia e ideologias). Não é preciso ter “brancura” para defender a “branquitude” acrítica, pois uma pessoa pode não ter aspectos físicos brancos para ser a favor dos valores da branquitude (leiam, no Brasil, Neuza Souza Santos para entender por que isso acontece). A questão, para nós, “brancos-mestiços” (Ver WALSH, 2008), é reconhecer a branquidade como dotada de privilégios e, numa prática ética, passar a “desmontar” os elementos que a perpetuam.
Vou me intitular afro-mestiço, negro que sou, mas advindo de famílias com uma “mistureba” sem tamanho. Por parte de pai, maioria negra com tonalidades diversas de pele. Pela família materna, descendências indígenas marcantes, o que define muitos familiares e primos com cores indefinidas. Filho de servidores públicos, nasci em bairro pobre, ou “popular” e durante parte da infância e adolescência convivi com muita gente e não me apeguei a sutilezas do racismo estrutural e sistêmico. Talvez não quisesse, talvez por ingenuidade.
Na universidade, percebi os meandros das construções sociais, de identidade, da necessidade de coletivos de luta e resistência das chamadas minorias, que bradam contra a dominância do poder de classe dos privilegiados de sempre. Sempre estive inserido em grupos proletariados e afins, verificando os achaques que lhe eram dirigidos, mas sem contribuir de maneira mais consistente, ou me encaixar em conformações pragmáticas. Sempre fui muito universalizante, tanto que apegado a multidões desde pequeno, familiarizado em reuniões parentais gigantescas e planetárias, fui estudar festas carnavalescas, onde a balburdia e a esbórnia esparramavam sobre qualquer distinção. Isso fez com que eu demorasse a ter um construto auto-afirmativo sobre a negritude e seus conceitos.
Diz Djamila Ribeiro que “quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico” (RIBEIRO,2018). A branquitude nunca precisou olhar para si porque ela sempre “foi”, ela “é”. O domínio científico, político, ideológico, filosófico, religioso, econômico, moral, sempre esteve atrelado a uma classe de maioria branca, cristã ocidental, que nunca precisou questionar seus méritos, pois sempre manteve a hierarquia, a propriedade, e os predicados de qualquer forma de estabilidade. Ultimamente, e de forma assombrosa, muitos pertencentes a esta casta legitimam de modo pernóstico a sua branquidade. Um motoboy na cidade de Valinhos, passou por uma brutal tentativa em desqualificá-lo, por parte um morador classe média de um bairro nobre. E uma juíza do Paraná teve o despautério de afirmar, após condenação de um grupo que praticava assaltos em Curitiba, em sua sentença que um dos réus – cujo codinome era “neguinho” - integrante da quadrilha “agia de forma extremamente discreta EM RAZÃO DE SUA RAÇA”! Um olhar totalmente parcial e racista para a cor do sujeito. Essa é uma visão imperialista, já que posto acima, povos colonizados e etnicamente discriminados, apartados do ideal de humanidade, são descolados dos valores ocidentais europeus que tangem a uma superioridade, como bem destacado nos primeiros parágrafos.
Nesse processo, a constituição da minha negritude passa por um melhor escrutínio entre ancestralidade e africanidade. Este último termo precisa ser, em minha visão, melhor trabalhado, pois confere um sentido de conexão ontológica, a qual muitos negros não estão vinculados. Porém, a ancestralidade propõe um horizonte de maior afetividade, tradição e comunhão. A negritude não é uma essência, ela não surge com a coloração dermatológica. É a distinção racializada que compõe os sentimentos e as perspectivas de ser negro e a busca de suas ancestralidades. E assim, quebrar a normatividade da língua, bagunçando a gramática, descolonizando o conhecimento, marcando identidades, socializando as consciências. No entanto, a equidade social não será possível sem a convivência e formação de laços com quem precisa reconhecer a herança de seus privilégios.
* Colunistas do Soteroprosa
FONTES:
CARDOSO, Lourenço. Retrato do branco racista e anti-racista. Disponível em:
http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/viewFile/1279/1055 , 2010.
JESUS, Camila Moreira de. Branquitude x branquidade: uma análise conceitual do ser branco. Revista ABPN , v. 6, p. 73-87, 2014.
OLIVEIRA, Lúcio Otávio Alves. Expressão de vivência da dimensão racial de pessoas brancas: representações de branquitude entre indivíduos brancos. 2007 (Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Sociologia). Universidade Federal da Bahia, Salvador).
RIBEIRO, Djamila. O que é Lugar de Fala? Feminismos Plurais; Pólen: São Paulo, 2019, 111 pág.
WALSH, WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula rasa. Bogotá, n. 9, 131-152, jul-dic. 2008.
https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/08/12/juiza-diz-em-sentenca-que-reu-negro-era-seguramente-integrante-de-grupo-criminoso-em-razao-da-sua-raca.ghtml