Lançado em 1931, “O País do Carnaval” é o livro que simboliza a estreia do monumental Jorge Amado na literatura, com apenas 19 anos. O Brasil vivia o início da Era Vargas, o rádio tornava-se o principal veículo de comunicação em massa, e ao longo daquela década surgiriam intelectuais que “descobririam” o país, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. As correntes culturais se desenvolviam no rastro do Movimento Modernista, que celebrou a miscigenação artística, provendo uma ressignificação dos estilos exógenos. Em algumas passagens, o romance pontua alguns contextos dessa era.
A história versa sobre a passagem de Paulo Rigger pelo Brasil, sua terra natal. Filho de um rico proprietário de uma fazenda de cacau no Sul da Bahia, ele passou a maior parte dos seus 26 anos em Paris. Desembarca no Rio de Janeiro durante os preparativos do carnaval daquele ano na companhia da francesa Julie, que se tornaria sua amante. Suas impressões sobre o país onde nascera não são nada boas.
Rigger acha o povo “indolente” e “preguiçoso” e claramente estranha a pátria que lhe pariu. Desdenhando de suas origens, sente-se superior, ressalta sua educação e gostos europeus, pertencente a uma classe dominante. Sua juventude na capital francesa foi de um bon vivant, curtindo a boemia, amancebado com alguma cortesã nos animados cabarés de Paris. Se esquece completamente que todos os seus luxos foram bancados pelo patrimônio arrecadado via exploração de camponeses nas lavouras cacaueiras.
Sua percepção sobre o comportamento dos brasileiros, no entanto, é um dos pontos chave da visão elitista do personagem, e que não passa despercebido ao olhar do leitor mais atento. Rigger flagra sua amante Julie amasiada com Honório, um negro musculoso, funcionário da fazenda, desferindo uma surra na mesma. Essa ação remete a um fato curioso no livro: ao entrar em contato com a balburdia carnavalesca, ele observa a letra da canção, cujo intérprete exprime o desejo de bater numa mulher (“Esta mulher há muito tempo me provoca/dá nela, dá nela/É perigosa, fala mais que pata choca/dá nela, dá nela...”). Em determinado momento, Rigger afirma: “só me senti brasileiro duas vezes. Uma no carnaval, quando sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu”, sucumbindo àquilo que ele mais rejeitava. A associação entre pular carnaval e o ato de surrar a amada, caracteriza uma visão de Rigger sobre ser brasileiro: alguém que se diverte ouvindo uma música cuja letra retrata um desejo em ser violento. Entende então que bater em mulher é uma característica nacional.
Em outra ocasião, sua noiva Maria de Lourdes revela que não é mais virgem e mais uma vez é corroído pelo ciúme, já que não se conforma em não ter sido o primeiro homem de sua vida. Rigger ainda desdenha da mulher negra quando escreve “O Poema da Mulata Desconhecida” (cuja bondade faz com que ela “abra as coxas morenas”, estereotipando as negras como adeptas do sexo fácil e desmedido).
O romance evoca um falso moralismo que podemos verificar em algumas vertentes da população nesse momento atual. O desdém com a emancipação feminina que contrasta com números e dados cruéis de violência doméstica; a estigmatização dos negros; a exploração trabalhista; o crescente distanciamento entre as classes sociais. Observações frequentes em um ambiente social e político que deu margem aos governantes mais toscos, à luz de uma classe média chauvinista e pseudopatriota que não consegue esconder o Paulo Rigger colado à sua sombra.
FONTE:
AMADO, Jorge. O País do Carnaval. Salvador: J. Olimpo, 1931.