O sociólogo Bourdieu, na década de 90, escreveu um livro chamado a Dominação Masculina, texto que provavelmente você já leu ou ouviu falar. Nesse trabalho de final de carreira, o autor descreve os contornos das assimetrias de gênero, além das formas como se instala e se reproduz, invadindo até mesmo no terreno da intimidade, aquele das quatro paredes. Bourdieu, por exemplo, destaca o quanto o sexo oral não apenas impacta de modos diferentes Homens e Mulheres, como também ajuda a reproduzir formas sutis de submissão. Segundo a linha de raciocínio da esquerda liberal, aquela das políticas identitárias e do lugar de fala, Bourdieu carrega uma desvantagem epistemológica grave, sendo incapaz de captar com clareza o núcleo do problema, afinal não era uma mulher, não tinha a EXPERIÊNCIA da exclusão e da violência de gênero. A resposta oferecida por Bourdieu, em uma das palestras de 1996, em Berkeley, é bastante atual, além de uma possível fuga do buraco identitário em que nos lançamos. Segundo ele, a dominação masculina é sentida de formas diferentes por grupos diferentes, envolvendo uma hierarquia difícil de negar, mas é sempre construída por estruturas objetivas, com regras e procedimentos concretos, o que significa a possibilidade de acesso, debates e estudos dos mais variados tipos. O exemplo de Bourdieu é o esporte, nesse caso o Rugby, sua paixão. As regras do Rugby não afetam todos os jogadores da mesma forma, já que eles desempenham papeis diferentes no campo, embora essas mesmas regras possam ser compreendidas por todos, inclusive por aqueles que jamais praticaram esporte ou até mesmo odeiam a prática do Rugby.
O marxismo, seja ele ortodoxo ou não, sempre partiu dessa mesma premissa. Eu posso não ser um norte-americano, muito menos um burguês, ou até um proletário, mas ainda assim posso avaliar as estruturas de funcionamento do capitalismo, já que essas mesmas matrizes operam de formas objetivas e concretas. Claro que no marxismo a EXPERIÊNCIA é importante, como em Lukács, por exemplo, ao analisar a obra de arte. Cada experiência produz um estilo único, um tracejado próprio, o que fica claro na diferença entre os artistas, como acontece em Kafka e Dostoievski ou Beethoven e Schoenberg. Apesar desse pacote experiencial, e das diferenças que ele produz, nada altera o modo como a realidade funciona, nem mesmo interfere nas estruturas objetivas que organizam a produção de um romance ou de uma partitura musical. O conceito de EXPERIÊNCIA no marxismo, ao contrário do que acontece na esquerda liberal, nunca foi um critério epistemológico, nunca foi um mero critério de verdade. Lembrem que Adorno foi até os Estados Unidos na década de 30, fugindo da expansão assustadora do fascismo na Europa. No processo, fez uma crítica profunda ao universo norte-americano, embora jamais tenha tido a EXPERIÊNCIA legitima de viver nos Estados Unidos. Diante desse simples detalhe, minha pergunta é meio óbvia, ainda que necessária: Se ele tivesse a EXPERIÊNCIA, se fosse um nativo daquele país, Adorno conseguiria captar melhor os bastidores daquela sociedade? O fato de não ter nascido e crescido nos Estados Unidos foi uma desvantagem em seus estudos? Por outro lado, Goffman, por exemplo, foi um sociólogo norte-americano, sendo o difusor do que chamaram de interacionismo simbólico. Isso faz de Goffman alguém mais autorizado ou mais capaz de entender a sociedade norte-americana?
O crescimento da esquerda liberal, e sua obsessão por pautas identitárias, perde de vista o fato de que MACHISMO, RACISMO e HOMOFOBIA são estruturas objetivas de dominação, podendo ser estudadas, discutidas e captadas por qualquer um. O componente da EXPERIÊNCIA, apesar de sua importância, não oferece ao sociólogo nenhuma vantagem ou desvantagem , criando apenas estilos diferentes ou pontos de vistas alternativos. O critério da dominação, ao ser subjetivado, como acontece com a esquerda liberal, não apenas pulveriza a luta política da esquerda, lançando todos em cavernas e guetos, como também enfraquece a própria análise sociológica das circunstâncias. No final das contas, cada um é autorizado a falar apenas da própria experiência, já que esse pacote experiencial é apresentado como o critério definitivo de análise. Isso ficou bem claro na polêmica entre a antropóloga Lilia Schwarcz e sua crítica à Beyoncé e seu novo álbum sobre a África. Lilia é uma antropóloga renomada, uma referência dentro e fora do país, inclusive nos estudos sobre racismo. Apesar de todas essas informações, e de toda bagagem de pesquisas, debates e aulas, ela é Branca, não tendo a EXPERIÊNCIA do racismo e das consequências. além de jamais ter sofrido na pele o peso das estruturas. Como disse antes, esse movimento da esquerda liberal de SUBJETIVAR A DOMINAÇÃO, apenas cria guetos analíticos e práticos, um tipo de relativismo perigoso em um mundo onde a esquerda precisa se unir, principalmente em seus mecanismos de análise.
O erro da esquerda liberal não foi a criação de conceitos como LUGAR DE FALA, ou coisas do tipo, já que eles têm sua importância, mas a crença de que a EXPERIÊNCIA é um critério epistêmico, como se ela fosse um critério de verdade ou falsidade, como se a EXPERIÊNCIA oferecesse a mim um acesso privilegiado ao mundo. O marxismo nos lembra, seja ele ortodoxo ou não, o quanto estruturas dominantes atravessam corpos singulares e subjetividades, mas jamais podem ser reduzidas a esses mesmos corpos e subjetividades. Elas são sentidas de modos diferentes, com pesos diferentes, embora esse sofrimento produzido não carregue uma vantagem epistêmica, muito menos um passaporte autorizado ao mundo.
Em outras palavras, uma mulher não tem mais ou menos vantagem quando o assunto é MACHISMO, ainda que ela sofra muito mais os efeitos da estrutura do que eu, um homem. Seu sofrimento, embora real, concreto e importante, não confere a ela uma vantagem epistemológica, ainda que possa lançar luz sobre temas e detalhes que eu jamais perceberia. As estruturas de dominação de gênero, por exemplo, não apenas compartilham de características semelhantes a outras estruturas (classe, raça, religião, colonialismo, etc), como também se apresentam de formas objetivas, podendo ser dissecadas, comparadas e criticadas. Isso significa que a EXPERIÊNCIA é importante, mas jamais como critério epistemológico, jamais como um critério decisivo na análise de teses, argumentos e pesquisas. Não é hora de produzir guetos, mas formas coletivas de interpretação, formas transversais de diálogo e de luta política. A esquerda liberal, quando obcecada pelas pautas identitárias, não percebe o quanto enfraquece o diálogo, as conexões e as possibilidades de entender o mundo como um espaço compartilhado de sofrimentos, lutas e resistências.
Eu posso não EXPERIMENTAR o seu sofrimento, eu posso não sentir sua dor, mas nada me impede de compreender completamente suas causas, seus contornos e suas implicações, da mesma forma que não preciso ser um Burguês, um Proletário, ou um dono de uma multinacional, quando produzo meu artigo contra o capitalismo. Da mesma maneira que não preciso ser um diretor de cinema quando escrevo uma crítica sobre a indústria cultural. Da mesma forma também que não preciso ser um músico quando entro no debate do campo musical, nem sequer preciso ser um romancista em minha crítica do universo literário. Mesmo não carregando a EXPERIÊNCIA, isso não é uma vantagem ou desvantagem no alcance da minha pesquisa. Por isso que o livro A dominação masculina não seria mais cientifico ou mais real ou mais verdadeiro se fosse escrito por uma mulher, embora o olhar dela pudesse oferecer novas possibilidades, temas e detalhes que um autor (homem) jamais enxergaria. Em outras palavras, o critério do lugar de fala é PRAGMÁTICO, envolvendo as portas que se abrem, os novos pontos de vista, mas nada tem de epistemológico.
Precisamos de mais autores negros, mulheres e gays, sem dúvida, mas não porque eles oferecem melhores acessos a uma verdade do mundo. Preciso acolher esses grupos porque trazem novos detalhes, novas perguntas e novos olhares jamais vistos até então. Precisamos de mais autores negros, mulheres, gays, indigenas e deficientes na academia por conta da diversidade produzida, não pela verdade gerada. O critério, como disse, é sempre pragmático, às vezes até estético, envolvendo a criatividade e um novo campo de articulações, mas jamais epistêmico. Precisamos de mais alternativas, mais pontos de vista, mais possibilidades de análise, o que não significa que eles são mais verdadeiros, mais científicos e mais reais. O critério da diversidade nada tem de epistemológico, sendo essa uma confusão criada pela esquerda liberal. Ao confundir as duas esferas, produziu um relativismo perigoso, além de uma fragmentação na própria luta de esquerda.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://www.politize.com.br/o-que-e-machismo/