O ódio é um sentimento humano ancestral, talvez até algo que ultrapassa as fronteiras da própria humanidade, nos conectando com outros organismos vivos, como insetos, anfíbios ou outros mamíferos. Embora em português temos um simples substantivo que descreve esse sentimento, o que poderia sugerir algum grau de homogeneidade, o ódio é muito mais complexo do que parece. Seguindo um raciocínio bem kantiano, uma mesma atitude jamais é um núcleo simples e homogêneo, já que pode conter diversas motivações de fundo, além de uma variedade de justificativas, princípios e consequências. Ou seja, podemos odiar a mesma pessoa por motivos diferentes, ou até mesmo por razões contraditórias. Parece complexo, eu sei, mas tudo vai ser esclarecido em breve.
Seguindo um pouco o raciocínio daquele filósofo alemão, de preferência em sua clássica “metafísica dos costumes”, vamos levantar algumas hipóteses por aqui, mergulhando em águas filosóficas. Quando se trata de Bolsonaro, e o ódio justificado que reuniu ao longo de seus quatro anos de mandato, muitas coisas brotam nos bastidores. Esse ódio parece homogêneo, com efeitos práticos parecidos, como o próprio voto em Lula, mas suas motivações oscilam.
Por razões metodológicas, é necessário alguns esclarecimentos básicos antes de um mergulho profundo nesse ensaio. Embora separadas, é preciso lembrar que as classificações descritas abaixo são tipos ideais, apenas constructos de um teórico social curioso. Ou seja, essas categorias descrevem experiências que normalmente se misturam na realidade, muitas vezes até se confundindo, embora por razões didáticas tenham sido classificadas em tópicos.
1) O ÓDIO DEONTOLÓGICO: Esse sentimento gira em torno de certos valores que nós esquerdistas defendemos, valores que independem de consequências práticas, eficácia ou números. Nesse sentido, Bolsonaro é odiado não por ter feito um péssimo mandato, o que é óbvio, mas por não acolher certos princípios que consideramos fundamentais (respeito à diversidade, à democracia liberal e suas regras civilizatórias, etc). Sua péssima performance política apenas potencializa o ódio, oferecendo justificativas e materiais retóricos, mas não é sua fonte primária de energia. Em outras palavras, mesmo se Bolsonaro fosse incrível, super eficaz, o resultado seria o mesmo. Nós, da esquerda, não o odiamos por conta de números, dados ou porcentagens. O odiamos pela defesa de valores que ferem nossas próprias virtudes, um compromisso basicamente deontológico, como diria o próprio Kant. Não somos contra a política de armas em função de sua ineficácia no combate à violência. Ainda que ela fosse eficaz, ainda que os números de assaltos, roubos e mortes baixassem, nossa postura não mudaria. É quase como um vegano que defende o veganismo não por conta dos efeitos trágicos da carne na saúde e no planeta, mas por uma certa ética inabalável nos bastidores, uma certeza intuitiva de algo mais fundamental.
2) O ÓDIO CONSEQUENCIALISTA: Ao contrário do primeiro, esse ódio gira em torno de certas consequências práticas indesejadas. Nesse cenário, Bolsonaro é odiado não por ser homofóbico, racista ou contrário aos valores de uma democracia liberal, como liberdade de expressão, autonomia dos poderes, etc. Ele é odiado pelo aumento dos preços dos produtos e do desemprego, pela má gestão na pandemia e do ensino básico, além de muitos outros problemas. Esse tipo de ódio não pode ser subestimado, principalmente em momentos de crise, já que ele mobiliza uma busca visceral por segurança ontológica, ou seja, uma tentativa de restabelecer uma sensação mínima de estabilidade física e psíquica. Os seus membros não se agarram a princípios fundamentais, inabaláveis, a prioris, mas a certos resultados imprevistos. Nesse cenário, é quase como um vegano defender o veganismo porque a carne faz mal à saúde e não porque animais tem um estatuto ético inquestionável.
3) O ÓDIO IMITATIVO: Esse ódio não tem uma base deontológica, muito menos consequencialista. Ele funciona apenas como um tipo de meme, uma espécie de instância que afeta certos corpos e se espalha de maneira imprevisível e impactante. Esse ódio, quase sempre compartilhado pelas redes sociais ou pela mídia, não tem substância, não tem corpo. Da mesma forma que um meme, ele se espalha sem um plano prévio, muito menos uma estrutura clara de raciocínio ou organização. Pode ser através de um gif, um vídeo no tik tok, uma charge, ou algo do tipo. Esse modelo descentrado de ódio não precisa de a prioris, nem mesmo de uma certa inclinação pragmática de fundo.
4) O ÓDIO IDENTITÁRIO: O ódio não é apenas um sentimento, algo de visceral que brota das profundezas do nosso corpo. Ele pode também ser uma moeda simbólica em certo tipo de economia de trocas, no sentido bourdiesiano. Nesse caso, odiar é um capital dentro de um campo específico. Quanto mais ódio, mais reconhecimento eu carrego em um certo circuito simbólico. Em outras palavras, quanto mais odeio, mais sou. Esse ódio define os parâmetros da minha própria identidade, do meu eu. Por esse motivo, ele não se refere tanto ao outro, ao objeto odiado, mas sim a mim mesmo, em um gesto de autodefinição.
5) O ÓDIO CATÁRTICO: Esse ódio se apresenta como um mecanismo de defesa, uma válvula de escape. O campo político, portanto, se torna um grande espaço terapêutico, um alvo onde posso descarregar tensões e crises que de outra forma não conseguiria. O ódio, nesse caso, se torna uma descarga útil de energia, algo de catártico, um espaço em que posso reunir toda uma rede dispersa e complexa de frustrações e crises.
6) O ÓDIO COMO GOZO: Por mais desagradável que o ódio pareça, além do gasto de energia que ele requer, ele pode também ser prazeroso, em um tipo estranho de dinâmica desejante, o que Žižek chamaria de "mais gozar". Um excesso esquisito transborda das fronteiras desse gesto, uma "mais valia" imprevista, curiosa, prazerosa. Em outras palavras, odiar pode ser divertido, muitas vezes até pretexto de algum orgasmo qualquer.
Cada um desses ódios descritos por mim é válido e, principalmente, necessário em tempos tão sombrios. Não importa se você odeia Bolsonaro por razões deontológicas, consequencialistas, identitárias, etc... Ele é uma figura perigosa que precisa ser anulada. Depois de sua saída do governo, no próximo ano, depois que a poeira baixar um pouco, podemos rever as implicações e até as divergências desses tipos de ódio. Por enquanto, é preciso unir as forças. Depois de alguns meses, começando de janeiro, podemos discordar dos desdobramentos políticos, éticos e até epistêmicos dessa variedade de formas de ódio. Enquanto isso, "ODIADORES DO MUNDO, UNI-VOS EM OUTUBRO!!".
Referências da imagem:
https://revistaforum.com.br/global/2022/5/31/bolsonaro-enfurecido-alemo-premiado-por-caricatura-que-satiriza-presidente-brasileiro-118133.html
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