Não quero saber de análises nem de reflexões. Só quero mesmo é viver a doce ignorância e suas múltiplas possibilidades de ser. Esse mundo determinado de extremismos está chato demais.
Não vou te deixar na mão. Irei contar uma história, mas já adianto que é uma história simples. Aconselho a não se demorar nessas bobas palavras, pois elas podem ameaçar suas certezas e convicções.
Dizem que um cientista cansado do seu trabalho dentro de laboratórios e salas fechadas, decidiu fazer uma grande viagem para saber se ainda existia no mundo algum conhecimento que ele não havia adquirido e, mesmo duvidando, saiu em sua jornada. Mas a viagem começou com contrariedades, já na estrada, o cientista soube que a pista, quilômetros à frente, havia sido interditada por causa de um deslizamento de terra.
Um pouco frustrado o homem resolve pegar um atalho que já conhecia anteriormente, esse caminho o salvaria de ficar parado na estrada como muitos outros motoristas, afinal ele era muito inteligente e sabia das coisas. Mas o que o homem não esperava era encontrar uma estrada totalmente de barro sem qualquer sinal de casa ou estação em que pudesse parar para pedir informações sobre onde comer ou dormir.
Seguindo pela estrada deserta, o cientista segue dirigindo por horas e preocupado, porque já começava a escurecer e não avistava nenhuma hospedagem, mas respirou aliviado quando avistou uma casinha à frente e acelerou para alcançá-la, torcendo para encontrar alguém.
Para alívio do homem, depois de alcançar o casebre e bater na porta, ouve passos arrastados e um barulho de chave destrancando a porta. Apesar da iluminação amarela da casinha iluminada por um candeeiro, o cientista consegue enxergar um homem envelhecido e esquelético que abre a porta.
_ Boa noite, senhor! Eu sou o doutor Lisboa, Ph.D. em Ciências da Natureza. Por causa da irresponsabilidade e descaso de governantes desse país, fui forçado a seguir por uma infeliz estrada e cheguei até aqui. Tenho urgência por livrar-me dessas roupas que estou vestido desde manhã, alimentar-me de uma comida quente, deitar-me em um colchão macio e confortável e esquecer esse dia cão.
O velho, parado em frente a porta, em silêncio, ouvia o palavrório do cientista e via seus maneios de mão e seu corpo imponente. Sem a certeza do fim do falatório, convida o homem para entrar, providencia uma tina d’água para ele se banhar, se lamenta por não ter mais a galinha assada do jantar da noite anterior, mas lhe serve a canja que preparou com as sobras do assado, estende colchas pelo chão onde se deita, depois que se assegura que o cientista já havia se acomodado na única cama da casa.
Antes de adormecer o cientista planeja acordar antes do velho e partir com rapidez daquele lugar miserável, seguindo viagem para lugares realmente interessantes e cheios de promissoras experiências. O homem adormece e ao acordar nota que o sol já estava alto no céu e irritado consigo mesmo, levanta daquele colchão duro e nota a mesa posta com pão, leite e um café que liberava um aroma inebriante, sem resistir ele devora o pão mais macio que havia experimentado na vida, um leite inexplicavelmente cremoso e um café...Ah! O café mais saboroso entre os mais saborosos de toda uma vida.
Após se fartar daquele singelo banquete, o cientista lembra do plano da noite anterior e se apressa em sair logo daquele casebre, mas do lado de fora avista o velho em um lugar que de longe parecia um galinheiro. Surge o remorso e decide ir até ele para agradecer. Próximo ao lugar, ver o velho jogando milho às galinhas e assustado percebe algo estranho, que uma das galinhas não era galinha.
Exaltado, quase ofendido, indaga ao velho se ele havia enlouquecido, pois mantinha entre as galinhas uma águia. Ave de nobre estirpe, de beleza sem igual. Mas o velho, novamente em silêncio, aguardou o tempo do cientista e, quase acanhado explicou que ele estava enganado, porque alí não havia águias, só galinhas.
O cientista, confiante em sua certa sabedoria, apontou para uma das aves e a denominou águia e explanou em uma retórica perfeita a origem da espécie, exaltando a sua nobreza e riu, riu de dobrar as costas da tamanha ignorância do velho, chamar de galinha uma águia.
Depois dos risos e lições, o cientista diz que provaria o erro do velho. Toma a águia-galinha (Ou seria a galinha-águia?) em suas mãos e a retira do meio do galinheiro e faz um gesto para o velho o seguir. Em passos largos segue garboso e imponente enquanto o velho o acompanha em passos já cansados.
_ Entre no carro, vamos até aquele monte – fala o cientista para o velho, que o obedece pacientemente.
No monte, o cientista ergue a ave e com voz vibrante ordena:
_ Voe, águia, voe! Siga a sua natureza!
Solta a ave, que assustada, bate as asas desesperadamente e pousa a poucos centímetros do homem.
O velho sorrir um sorriso amarelo e diz:
_ Eu não disse, galinha não voa.
O estudioso irado, decide não ir embora daquele lugar até que a ave seguisse a ordem da vida de uma águia e voasse pelo mais alto céu. E o homem assim fez, ali ficou por dias e noites, subindo o monte para empurrar a ave para o voo e descendo o monte frustrado com a resistência daquela que, segundo ele, tinha nascido para voar.
Vários dias seguiram até que a ave voou, voou até alcançar o mais alto céu, talvez para tão distante que não soube mais voltar. Voou só e assim permaneceu em sua sina de ser águia, solitária a buscar as carnes apodrecidas da vida. E o milho saboroso do estar? Dizem que nunca mais terá.
E você, tem seguido as possibilidades de ser ou vem morrendo na condição miserável de ter de ser?
Texto interessante!