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A DELEGADA ASSASSINADA, A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA E A VITIMIZAÇÃO DO CULPADO

Foto do escritor: Carlos Henrique CardosoCarlos Henrique Cardoso



A semana se iniciou com a notícia de que o corpo da delegada civil Patrícia Neves Aires foi encontrado dentro de seu carro, no município de São Sebastião do Passé. O companheiro dela, Tancredo Neves (isso mesmo: ele tem nome de ex-presidente eleito), teria dito à polícia que os dois haviam sido sequestrados, foi deixado numa estrada e seguiram com ela. A princípio, uma versão dessa pode ser plausível. Tratando-se de uma autoridade policial, poderia ter sido vingança de supostos criminosos presos por ela ou algo do tipo. No entanto, a coisa se revelou quando ele admitiu a mentira e confessou ter matado Patrícia durante uma discussão, abandonando o corpo da delegada e inventando uma versão que não se sustentou.

 

Eu nem ia escrever nada sobre o assunto, mas um post da colega socióloga Laíse Neres me chamou atenção. Ela comentou o seguinte:

 

“Saber que uma delegada que atuava no enfrentamento às violências de gênero foi assassinada pelo próprio companheiro, é só mais uma infeliz constatação de que o problema é muito mais estrutural do que possamos mensurar e de que boa parte das nossas estratégias de defesa e como se libertar de relacionamentos abusivos está falhando miseravelmente! A mulher tinha porte de arma, conhecimento, dinheiro, e mesmo assim sucumbiu por causa de um medíocre”

 

Pois é... Ela coordenou o Núcleo Especializado em Atendimento à Mulher e outras unidades. O que deixa o caso mais chocante é o histórico do acusado: Tancredo já foi denunciado por outras mulheres, exercício ilegal da Medicina, e falsidade ideológica. A pergunta que fica é: como alguém do status dela se envolve com um sujeito tão enrolado e vagabundo???

 

As amigas que estavam presentes no velório afirmaram que ela reclamava da relação e ouvia recomendações para deixá-lo, porém, esperava que ele se emendasse e se tornasse enfim um bom parceiro. Sua mãe também não simpatizou com o namorado da filha e o achou “muito ciumento”. Patrícia deixa um filho de 7 anos. Nota-se que apesar do currículo profissional, ao que parece, uma provável carência afetiva ou medo da solidão falou mais alto que a expertise profissional.


Segundo dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, juntamente à Secretária de Segurança Pública, nove em cada dez mulheres assassinadas são mortas pelo próprio companheiro. Entre 2017 e 2023 houve um feminicídio a cada 3 dias em nosso estado. A maioria tinha entre 30 e 49 anos. Esses números cruéis refletem o que Laíse falou no post acima: é uma questão estrutural que nem uma delegada especializada nesse tipo de crime consegue escapar. Pra piorar, ainda há em segmentos da sociedade a vitimização do culpado!

 

Do que estou falando? Recentemente, a ativista Maria da Penha recebeu proteção especial após sofrer ameaças de morte por grupos misóginos conhecidos como “red pills”. Isso após um documentário mostrar “o outro lado” da história. Entrevistou o ex-marido acusado e condenado por ter atirado e deixado Penha tetraplégica. Ele afirmou que jamais a agrediu e contou uma versão que a casa foi invadida por bandidos e que eles é que teriam alvejado ela. Alguns influenciadores começaram a tentar questionar a versão oficial da ativista. Anos após uma lei ser criada com o nome dela para proteger mulheres vítimas de agressões, tentam colocar em xeque sua trajetória de luta para considerar que o ex-marido é que pode ter a “verdadeira verdade”. Quando acontece casos assim – no qual uma notória militante da causa feminista pode ter dado falso testemunho, segundo “documentaristas” – o que esperar na diminuição desse tipo de crime? Difícil... Ela teria mentido sobre o marido, então teria que pagar com a vida? Olha que desgraça a caixa de Pandora ideológica que foi aberta anos atrás!!

 

E aí que entra algo pior ainda, na minha concepção. É que esse assunto escabroso passou batido na mídia nacional. Consideraram que dar ibope pra uma história surreal proposta no documentário não valia a pena. Penso que quando algo não é sumariamente desmascarado vindo à tona, é porque abaixo da superfície a situação fica mais sustentada, alimentado discursos de ódio e comunidades masculinistas. E assim, violentadas e corpos femininos se acumulam nas estatísticas, vitimadas pelo machismo e questionadas por revisionistas.

 

Muitos podem avaliar que Patrícia “deu mole” ao se apaixonar por um dito cujo todo atrapalhado, mas cabe avaliar não os sentimentos dela, mas o caráter dele! Não cabe aqui julgar nem compreender como alguém tão escolado pôde se envolver com tamanha tranqueira, mas que ela está morta e não pode se defender de nada! Mais uma vez podemos inferir que mulheres correm risco ao amarem e isso é demonstrado por dados. Assim como Maria da Penha está há 40 anos numa cadeira de rodas sendo ameaçada por ter acusado um “pobre coitado”. Viram como o buraco é muito mais embaixo?

 

Nem tenho lugar de fala pra expor de maneira mais enfática assuntos delicados como esse, mas é preciso falar sobre a terrível escalada nos cada vez mais alarmantes casos envolvendo violência de gênero no Brasil. E pra piorar, a culpabilização da vítima campeando perigosamente os territórios domiciliares e as redes sociais.


FONTE:


 

 

 

 

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2 Comments

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Xico Cláudio
Xico Cláudio
Aug 16, 2024

Carlos, gostei muito do texto. Muito mesmo! Só penso que não é somente "carência"ou "solidão", é algo muito mais complexo que mistura cultura e estrutura social de gênero e questões psíquicas. Além disso, são papéis diferentes: ser "a delegada que defende a causa" e estar no lugar de "amante com suas diversas questões íntimas".

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Aug 16, 2024
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Exatamente,Xico! Não vale o questionamento retórico que fiz,até porque sentimentos expostos são diferentes de qualquer qualificação.

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SOTEROVISÃO
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