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A MORTE É UMA FESTA!




Quando se inicia a leitura do livro “A morte é uma festa”, de João José Reis, escritor, pesquisador e professor de história, não se tem a menor ideia de onde as quase quinhentas páginas vão desaguar. O autor inicia de forma leve, apresentando o evento da Cemiterada.


(Parênteses: a Cemiterada foi um levante ocorrido em 25 de outubro de 1836 contra o não sepultamento de pessoas dentro das igrejas. Revoltados, um grupo de pessoas destruiu o recém-inaugurado Campo Santo – hoje um dos maiores cemitérios de Salvador, localizado no bairro da Federação.)


Voltando ao início do livro, o autor também apresenta breves argumentos, que serão reforçados durante o decorrer da leitura, de que a questão da Cemiterada não foi só o motivo citado acima. Foi algo bem mais complexo. Além disso, descreve a estrutura do que abordará em cada capítulo. Mas é depois dessas rápidas páginas que se inicia a jornada de prazer, aprendizado e cultura que João vai nos apresentando.


Ele mergulha em temas como a forma como as pessoas eram enterradas, os rituais e as questões ligadas às Irmandades. Dedica um capítulo aos custos dos funerais, enterros e rituais religiosos naquela época. E claro, ao final, depois de tantos argumentos concretos ele finaliza falando da Cemiterada e suas diversas questões políticas, econômicas, religiosas e socioculturais. Vale destacar o capítulo 07 como um dos mais interessantes, pois ele vai falar sobre como as pessoas eram enterradas. E é de impressionar desde a extravagância, de quem tinha dinheiro ou não, e a desumanidade do cemitério do Campo da Pólvora, onde pessoas escravizadas e toda dita escória social era enterrada (assassinos, suicidas, libertinos, entre outros).


João escreve com uma riqueza de detalhes impressionante, resultado de uma pesquisa abrangente nos arquivos diversos deste Brasil e principalmente na Bahia. Fatos históricos e trechos de documentos são descritos exatamente como estavam escritos em seus originais – a maior parte destes pertencentes à igreja católica. A morte é o mote principal. Ela perpassa todas as páginas do livro e João nos revela o quanto na comunidade baiana dos séculos XVIII e XIX celebrar a morte com luxo (o melhor tecido, a melhor mortalha, a irmandade mais importante, o santo mais querido), pompas, muitos padres e cortejos cheio de multidão era garantir a passagem suave para o céu sem direito ao “elevador parado” que é o purgatório. Para quem não sabe, na igreja católica o purgatório é um “local de passagem”, de purgação dos pecados, tendo como destino o céu. Nele ainda há chances de salvação.


A forma como ocorria o funeral e o enterro denotava o desejo de ser abraçado pelo céu. Quanto maior e cheio de gastos, maiores chances. E o mais fantástico é que João destaca que independia de classe social. Aqui o autor cutuca as questões ligadas à escravidão. O quanto aquela pessoa escravizada desejava ser enterrada como um branco. Ou seja, a cultura africana era usurpada, ou melhor, estuprada e aniquilada a ponto de o negro desejar ser como o seu senhor. Esta questão racial atravessa todos os capítulos do livro com detalhes entristecedores e revoltantes. Nesses momentos o escritor é sarcástico em seus comentários demonstrando a crueldade que vivenciamos na nossa história.


Outros dois adjetivos que podemos dar para o autor são o bom humor e a escrita fluida. Há momentos no livro em que é possível abrir um sorrisinho de canto de boca ou dá uma boa gargalhada. Sim, caro leitor, ele fala de morte sendo possível rir. Lembre-se, ela é uma festa! Mas o que leva o livro ser excelente é a linguagem acessível e simples, longe do academicismo que retira o prazer de uma leitura, por vezes. Parece que João está ao nosso lado contando uma história em um bar tomando uma cerveja, um uísque, uma água, o que você desejar. E mesmo se utilizando de palavras da época para tornar o texto mais próximo do seu tempo, isso não torna a leitura complicada. Ao contrário, demonstra uma elegância na escrita e até diria, uma preocupação em se fazer lido.


Muita gente pode ter medo, isso mesmo, me-do, de ler este livor por causa do tema, a morte. Como falei acima, ela é o eixo principal, mas o que se verá é uma aula de história, economia, política, religião, sociologia, psicologia, entre outras “ias”. E não precisa ler o livro como estudo, não! Ele é um livro que se aproxima da literatura em muitos momentos. Uma literatura histórica (não é isso, eu sei), uma história com toques de literatura. O mais importante é que quem ler, sairá com tanta informação que talvez seja difícil se conter com uma única leitura. São tantos temas, e tantos deles atuais, que “A morte é uma festa” deveria ser mais conhecido e publicizado. Não é sobre a Cemiterada ou algo da Bahia, é sobre nossa história, suas belezas e tristezas, é sobre amor, fé, devoção, é sobre celebrar a morte e sobe celebrar a vida. Dica: corre lá e leia!


IMAGEM: XIco Cláudio

2 Comments

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Flávia Lacerda
Feb 15
Rated 5 out of 5 stars.

Excelente texto apresenta com leveza a história da Bahia e um tema delicado como a morte.

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Guest
Feb 14
Rated 5 out of 5 stars.

Uau, Xico. Sua sensibilidade e leitura tão atenta são realmente divinas! Sou fã! 😍♥️

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