Todo mundo sabe quem ela é. Seja pela cara suada e cansada ao entrar na sala de aula atrasada (de novo), seja por puxar uma conversa com o professor pedindo uma extensão de prazo da entrega do resumo porque ela teve mais um imprevisto, seja por não aparecer na reunião de equipe por conta de um problema pessoal ou por pedir desculpas pela décima vez porque seu bebê soltou uma berreiro na aula de filosofia. Sim, ela nem sempre está sozinha e sua companhia não quer saber de teorias, hipóteses ou dados quantitativos. Ela é uma mãe. Ela é uma universitária. A trancos e barrancos, ela está tentando ser uma mãe universitária.
A mãe universitária faz parte do aglomerado de mulheres que têm participado da educação superior, um número tão surpreendente que as pesquisas indicam que elas hoje são maioria nas universidades, ainda que a exclusão educacional das mulheres tenha sido uma realidade brasileira por cerca de 450 anos. Quais foram os fatores para esse distanciamento do locus educacional? A velha e péssima ideia de que, para a mulher, o espaço privado é seu único local de validade social. Participar da vida pública não deveria se encaixar no que seria indicado como a “natureza feminina”:
“Segundo Badinter (1985) a concepção atual da maternidade fora construída ao longo dos séculos a partir de discursos - teológicos, filosóficos e médicos - que colocaram a mulher em uma posição de cuidadora natural, constituindo atributos e papéis sociais que as destinaram à maternidade, ao casamento e, consequentemente, aos espaços privados. Estes mesmos discursos que naturalizam o trabalho de cuidado e os trabalhos reprodutivos à mulher, foram utilizados para fundamentar a exclusão destas do ensino superior (ARAGÃO; KREUTZ, 2010; SCHIEBINGER, 2001).” (CALMON, Lizie Souza et al. , 2022, p. 110)
Esse trecho acima é de um estudo sobre mães universitárias. Um dos tantos que tenho lido e analisado, normalmente, escrito por uma mãe que entendeu bem os percalços da sua jornada acadêmica e busca na sua pesquisa uma forma de alertar a sociedade sobre como estamos distantes de oferecer um espaço seguro e adequado para as mães universitárias. Para elas, o jogo é se adaptar às demandas da universidade quando, de fato, era papel do campo acadêmico atender esse público com as políticas de permanência adequadas como auxílio creche, creche universitária, fraldários em todos os campi, salas de amamentação, regimento especial e outras questões que já são debatidas há anos mas poucas são levadas em conta.
A mãe quando entra na universidade não encontra apenas barreiras físicas, como a falta de um espaço mínimo e adequado para deixar seu filho quando vai à universidade ou um banheiro apropriado para trocar a fralda do bebê no prédio da sua faculdade. São inúmeras disposições de espaço, discurso, ritmo e autonomia que não se casam com as demandas de cuidado materno ou não incluem políticas que atuem para equilibrar essas exigências. Não são apenas impedimentos para a atuação plena dessa mãe universitária, mas atuam como o disclaimer de desencontro da mulher estudante com a mãe estudante, ao ponto dela não se enxergar como capaz de atuar no espaço de aprendizado, pesquisa e saber. Não são meros obstáculos, são forças de expulsão desse corpo social do espaço acadêmico.
Essa premissa é amplamente discutida por uma mãe universitária, a Luana Fontel, em sua tese de mestrado “Mães na universidade: Performances discursivas interseccionais na graduação”. Ao analisar os dados das conversas realizadas com mães universitárias em uma pesquisa via Whatsapp, ela escolhe acertadamente abordar a expulsão como o termo mais alinhado à experiência da sujeita materna na universidade. Ela diz:
“Opto pelo termo “expulsão”, porque sinto que o termo “evasão” escolar parece implicar um tipo de agência a essas sujeitas, o que não se dá em realidades cuja desistência é a única opção possível, além do que os relatórios institucionais que falam de evasão parecem se debruçar sobre o indivíduo, catalogando seus motivos pessoais para a saída, aqui é feito um movimento diferente, aqui não se pergunta ao indivíduo porque evadiu, mas a instituição porque não resguardou sua permanência.” (p. 90)
Para contrapor esse cenário de oposição à sujeita mãe no campo universitário, políticas de permanência têm sido discutidas e estabelecidas, um aspecto que ao longo da história da educação do Brasil evoluiu grandemente. No entanto, ainda não é suficiente para que as próprias instituições universitárias se coloquem como aderentes a elas. Diante disso, a pressão das próprias mães universitárias se torna a saída principal, com a formação dos coletivos maternos. A pesquisadora Juliana Silva e outras autoras esclarecem essa questão, afirmando:
“Dentro das Instituições de Ensino Superior (IES), os coletivos universitários são um importante elemento de organização política e cooperação entre os estudantes, pois o diálogo com as reitorias, pró-reitorias, coordenações, secretarias e demais componentes das instituições poderão significar mudanças significativas para acolhimentos dos grupos em vulnerabilidade social inseridos nestes espaços, e por consequência na redução das desigualdades sociais dentro e fora da universidade.” (2021, p.6)
A potência materna tem construído coletivos para que sejam devidamente cobradas políticas de permanência e discussões sobre os corpos maternos no ambiente acadêmico. Muitos deles têm surgido pelas redes sociais, como um fenômeno social intenso, dado que a condição materna mantém as mães com tempo escasso para encontros presenciais. O grande poder de mobilização e conexão que o ambiente virtual das redes sociais proporciona impele a surgir algum tipo de organização mais maleável e flexível diante dos desafios de cuidado que tomam a vida das mães universitárias. Segundo o artigo “Coletivos de mães universitárias rompendo com a história da exclusão feminina nas universidades”, de Juliana Silva e outras autoras, existem 25 coletivos de mães universitárias no Brasil, com maior predominância deles na região sudeste.
Assumir o espaço público é mais do que uma mera ocupação para uma mãe. É um verdadeiro campo de guerra de lutas simbólicas sobre o lugar da maternidade no mundo. E nessa disputa, não há outro jeito senão unir forças para que as desigualdades não se amontoem na estrada da vida acadêmica da mãe universitária. São camadas e mais camadas de obstáculos que serão vencidos pela articulação contínua e a visibilidade dessa figura que está em busca de direitos básicos para a formação educacional e para a participação nas discussões que vão transformar a sociedade.
FONTE:
CALMON, Lizie Souza et al. Maternidade e universidade: a experiência de um projeto de extensão focado no acesso, permanência e progressão de mulheres-mães. Expressa Extensão, v. 27, n. 1, p. 108-117, 2022.
FONTEL, Luana. Mães na universidade: Performances discursivas interseccionais na graduação. Orientadora: Adriana Carvalho Lopes, v. 102, 2019.
SILVA, Juliana Marcia Santos; SALVADOR, Andréia Clapp; DE JANEIRO, Católica do Rio. Coletivos de mães universitárias rompendo com a história da exclusão feminina nas universidades. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, v. 31.
Fonte da imagem: https://lunetas.com.br/maes-na-universidade-ter-filhos-estando-na-universidade-te-faz-uma-errante-na-vida/
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