A UBERIZAÇÃO PSÍQUICA NA IDADE MÉDIA TECNOFEUDAL
- Armando Januário
- 31 de mar.
- 3 min de leitura

O pensamento complexo é uma das bases para a sociedade democrática. Na atualidade, porém, paralelo aos avanços tecnológicos, uma onda de ataques sistemáticos a todas as formas de construção analítica vem abrindo espaço para “soluções” autoritárias. Fundamentado na economia da atenção, um dispositivo modulador do comportamento humano avança, de maneira sutil, impondo aquilo que cada pessoa vai acessar. Estamos falando das redes digitais.
Em termos simples, a estrutura capitalista, outrora baseada na exploração da força de trabalho e monetariamente centrada no lucro, sofreu uma mutação. As big techs, ao disseminar publicidade em massa, atraem a atenção, utilizando recursos diversos, desde cores, até frases envolventes. Empresas investem pesado para estar nessas prateleiras digitais, enquanto os consumidores, agora convertidos em usuários, absorvem – e são absorvidos pelos – conteúdos previamente escolhidos por algoritmos, com base nos dados fornecidos por eles mesmos. Na prática, os usuários são induzidos a abrir mão do seu psiquismo e entregá-lo aos donos dos territórios digitais. Aqueles servem a esses, disponibilizando informações pessoais.
Esse ordenamento manipula o próprio capitalismo, na medida que disponibiliza “terras” – nuvem, redes digitais, plataformas digitais de gestão – para que os empresários paguem, a fim de ter os seus produtos oferecidos em larga escala, enquanto os usuários seguem terceirizando a sua capacidade de pensar, ante a massiva oferta de produtos, estruturada a partir dos dados sensíveis que disponibilizam. Exatamente nesse ponto, a relação de lucro – fundamento capitalista – se esvai, sendo substituída pelos imperativos da renda gerada infinitamente para os donos de plataformas digitais. Por exemplo, os empresários interessados em manter os seus empreendimentos destacados pelo Google, pagam para estar nesse conglomerado – em um processo de submissão do capital – enquanto os usuários, ávidos para utilizar os conteúdos digitais, entregam dados sensíveis acerca de si mesmos. Esse ordenamento econômico, ao açambarcar a atenção, com tópicos sensacionalistas, e, por vezes, recheados de informações inverídicas – fake news – engajam milhões que se enfrentam nos espaços virtuais, autênticas rinhas desprovidas de regulação e reflexão, pautadas pelo ímpeto em satisfazer o narcisismo de estar certo ao preço de agredir e ameaçar, no âmbito de uma terra-sem-lei, denominada internet. A fúria sem tréguas dessas batalhas alimenta desde o Instagram e YouTube a grupos de WhatsApp, aumentando a renda dos seus proprietários, o lucro dos empresários e a prevalência de transtornos mentais dos usuários. A esse sistema, Cédric Duran, professor e economista francês, denominou Tecnofeudalismo, materializado nas relações entre os donos das plataformas digitais (senhores tecnofeudais), os empresários que investem capital para destacar os seus produtos e serviços nesses espaços virtuais (vassalos) e os usuários (servos explorados através dos próprios dados e cada vez mais dependentes dessas tecnologias).
Os usuários se rendem a lógica tecnofeudal, seja entregando suas senhas para preenchimento automático quando acessam uma plataforma, seja em posts, expressando opiniões sobre variadas temáticas e deixando escapar aspectos privados das suas vidas. Se, de fato, ainda são vidas, posto que gastam horas rolando telas, em uma compulsiva conexão online. E mesmo excluindo as informações de acesso, eles ainda terão seus dados explorados pelas empresas de tecnologia. Nesses termos, sob o discurso de progresso, as tecnologias se tornaram instrumentos de dominação, fomentando a ignorância e a entrega da capacidade de pensar às gigantes do Vale do Silício. Sob a tirania dos dados, a humanidade está aderindo a ideologias totalitárias e mergulhando em medievos digitais.
Quem ousa questionar esse Zeitgeist, sofre. As diferenças – de opinião política, identidade de gênero, orientação sexual e qualquer marcador subjetivo-sócio-histórico – são perseguidas, degradadas e utilizadas para açoitar com a cultura de cancelamento quem resiste às ondas de desinformação e ódio às diferenças. Estamos sendo convidados à uma afiliação ao fascismo, por plataformas digitais que manipulam o Estado Democrático de Direito, com o objetivo de pavimentar a eleição de parlamentares e governantes da extrema direita. Fascismo mais feroz em relação àquele do século passado, verdadeiro pesadelo que ceifou a vida de milhões na Segunda Guerra Mundial. Quando entrega as suas mentes para um pequeno grupo de bilionários das tecnologias, a comunidade global despercebe a sua cooperação para expandir o fascismo, agora mediado pelos meios digitais, a uma maximização sem precedentes. De fato, um tecnofascismo, turbinado pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), determinado a utilizar as democracias para chegar ao poder e expandir, na base de mentiras e múltiplas violências, a hegemonia das classes dominantes.
Quem chegou até aqui, talvez pense no desafio em recusar o convite viciante de entregar a sua liberdade para os algoritmos, haja vista a sensação dopaminérgica em ver suas publicações recebidas. A própria noção de viver se transformou em ser curtido e consumido por milhões. Refutar essa oferta de grandeza parece loucura, quando, essencialmente, consiste em uma tarefa apenas para quem está disposto a compreender tanto a sua finitude, quanto o chamado para usufruir da própria companhia, longe dos aplausos artificiais das redes.
Excelente texto! Seus argumentos justificam meu distanciamento das redes sociais.