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AGÔ, HELENA ANTONELLA......


Peço licença. Agô. Licença aos ventos, à Divindade aos anjos e orixás, ao tempo que passa e ao tempo que permanece, à vida que pulsa e à morte que atravessa. Licença para entrar na sala da casa de Helena Antonella, essa casa que, mesmo pequena nos tijolos, é infinita no afeto. Uma casa onde cabe o mundo inteiro, onde cada canto é um eco de cuidado, de abraço, de olhar profundo. Uma casa onde Helena Antonella, no início e auge de seus dois anos e sete meses de caminhada de vida costurava o tempo com gestos delicados, onde sua presença era altar e alvorada. Enquanto Helena é “a Iluminada”, Antonella é a “pequena flor”, e assim temos a pequena flor Iluminada.


Nesta noite de sua partida a porta dormiu aberta. Não por descuido, não por esquecimento. Mas porque havia uma travessia marcada, e Antonella, sempre generosa, deixou passagem livre para os mistérios do céu. A porta dormiu aberta como quem compreende que o amor não se tranca: se oferece. Dormiu aberta como quem sabe que, do outro lado do tempo, há uma outra sala, maior, mais clara, onde Deus prepara o café com cheiro de eternidade.


Ela atravessou o rio. Não o rio de nossa terra, aquele que conhecemos com pedras, margens e correntezas, mas o Lethe, o rio da mitologia grega, cujas águas apagam as memórias da dor para que se possa recomeçar. Mas nesta travessia, um segredo: Helena Antonella não esqueceu. Porque sua travessia não foi rumo ao esquecimento, mas ao reencontro. A Lethe se resignificou. Tornou-se batismo. Deixou de ser fuga e tornou-se parto. Em vez de apagar, lavou. Em vez de dissolver, reconectou.

Na margem de cá, os corpos tremem. Os olhos se enchem de lágrimas. Os familiares e amigos se agarram uns aos outros, desafinados, dilacerados, tentando cantar algo entre soluços. “Segura na mão de Deus e vai…”.O clamor é intenso e forte, era um grito, uma tentativa de entregar Antonella ao invisível. Mas ninguém entendia direito o que era esse "vai". Ir para onde? Por quê? Por que agora? E então, como num sopro de resposta, do outro lado do rio se ouve um canto que não pertence a esta terra. Um canto doce, leve, alado:


“Eu fui embora, meu amor chorou...  Eu fui nas asas de um passarinho, eu fui nos beijos de um beija-flor... Um tic tic tac no meu coração... Renascerá!”


Era Deus. Era o coro dos anjos. Era Antonella dançando nas águas celestes, no ritmo de um amor que não morre, apenas muda de forma. Era a certeza de que, se partiu, foi para se multiplicar nos sonhos, nas lembranças, nas brisas da tarde e nos risos das crianças.


Porque Antonella não foi embora. Ela se espalhou. Nos porta-retratos da estante, no cheiro de roupa lavada que permanece no armário, nos brinquedos do dia a dia quando o mundo se apresentava e ela movida por toda alegria e ousadia se enchia de alegria. A casa que ela tanto amava, o pai ao qual se agarrava e a mãe que a amamentava. Eis que tem a vovó que todos os dias estava a acariciar esse anjo do Senhor. Tios e tias que conversavam, brincavam e aprendiam, agora ecoam no coração como orações íntimas.


Ela se tornou tempo. E o tempo dela é circular, feito mandala. Volta, gira, ressurge. Vem no silêncio da madrugada e no riso que brota sem razão. Antonella (a pequena flor Iluminada) é agora presença sem corpo, mas com perfume. É ausência cheia de sinais. É saudade que acolhe, não que esmaga.


Na sala da casa onde cabe o mundo, ainda ecoam suas histórias, suas risadas, suas birras doces, seus nãos. Os objetos não são mais apenas objetos, são relíquias de afeto. O sofá virou altar. O quarto virou memória. A área da frente e a sala (onde muito brincava), um relicário do sagrado. Cada espaço da casa agora é uma carta aberta ao céu.


E a porta… ah, a porta continua dormindo aberta. Não porque ela partiu, mas porque deixou aberta a possibilidade de reencontro. Um dia, todos nós atravessaremos também. Um dia, a canção será completa, de um lado e de outro. Um dia, não haverá margem: apenas encontro.


Helena Antonella, agora renascida, carrega consigo os nomes de todos nós. Não há adeus que dê conta, mas há silêncio que acolhe. Não há palavra que baste, mas há poesia que consola. Você atravessou, Antonella, e do outro lado, onde a eternidade tem cheiro de flor e som de riso, você continua sendo amor. E amor não morre. Amor se espraia.


Agô, Antonella. A porta continua aberta. A casa ainda é sua. E sempre será!

5 Comments

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Guest
Jun 09

Helena Antonella você deixou nossos corações partidos com a sua travessia. Que amigos, familiares sejam confortado por aquele que te chamou.

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Carlos André
Jun 08
Rated 5 out of 5 stars.

A partida é sempre sofrida para quem fica, principalmente quando se trata da passagem de uma criança, que tão nova parte para outro plano.


É imensurável a dor dos familiares!.

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Cremilce Santana
Jun 08
Rated 5 out of 5 stars.

"A porta dormiu aberta", um texto que expressa não somente a perda mais também o reencontro, não somente a tristeza mais também a alegria, não somente o esquecimento mais também as lembranças. A perda ou a morte é fato, mas nem todos conseguem superar, mais o fato é, que a porta dormiu aberta, justamente para esse reencontro um dia novamente. Que o Espírito Santo de Deus, o consolador, conforte os familiares.

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Guest
Jun 08
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"(...) Não há palavra que baste, mas há poesia que consola. Você atravessou, Antonella, e do outro lado, onde a eternidade tem cheiro de flor e som de riso, você continua sendo amor. E amor não morre. Amor se espraia."

Que texto! Parabéns! Em meio à dor da saudade e despedida,essa poesia que consola! Viva a arte,pois a poesia nos ressuscita!

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Guest
Jun 08

Que Helena Antonella receba o afago divino por toda eternidade.

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