O ano é 1951, um período distante, muito distante... um mundo onde algoritmos, tweets e smartphones ainda não faziam parte do imaginário popular, nem mesmo como peça de ficção científica. Tudo era mais simples, mais lento, mais clássico...
João, o nosso protagonista, era a pessoa mais sociável da cidadezinha de Itararu, interior do Nordeste. Era completamente impossível sair de sua casa sem bater um papo com umas dez pessoas pelo caminho. Talvez eram seus olhos suaves e castanhos, ou talvez sua voz tranquila e acolhedora... ninguém sabia ao certo o motivo da influência de João sobre as pessoas. Não tinha uma festa que nosso protagonista recusasse. Casamento, batizado, aniversário, debutante, despedida de solteiro, noitada... João, com certeza, estava lá!!! Como disse antes, nunca existiu em Itararu alguém mais sociável do que nosso herói. Mas, no ano de 1954 uma carta chegou pelo correio, um pequeno pedaço de papel carregado de enormes surpresas. João tinha recebido uma bolsa de estudos numa grande universidade estrangeira, uma chance incrível de cursar sociologia, seu maior sonho. Ao longo de quatro anos estudando fora do país, bastante desconectado de suas raízes nordestinas, algo aconteceu, algo que mudou completamente a vida do nosso protagonista, assim como de toda a cidadezinha de Itararu.
Um dia depois da formatura, João retorna até a sua casa. Logo que pisou o pé na entrada da porta, seus pais, dona Maria e seu Miguel, acharam o filho um pouco estranho, mas não sabiam ao certo o que era. Talvez tinha sido o cansaço da longa viagem de trinta horas com tanto fuso horário. Como as únicas notícias do exterior chegavam apenas em formato de carta, era muito difícil ter uma ideia clara sobre como era a vida de João naquele país distante e esquisito. No dia seguinte, uma chuva tomou conta da cidade, todo o céu parecia triste e perigoso. Ventos e raios se confundiam com as gotas de chuva naquela sexta-feira. Respirando o cheiro inocente de humidade e nostalgia, nosso protagonista olhou curioso as idas e vindas de homens e mulheres daquela cidade, daquele pequeno pedaço de terra que por quatro anos não pisava. Apesar de algumas mudanças, Itaruru permanecia a mesma, com sua Igreja no centro e seus bairros simples organizados ao redor dela.
Sociólogo formado em uma grande universidade estrangeira, João observava as pessoas da rua com um olhar misterioso, uma mistura de interesse e suspeita. Da janela da sua casa tudo era visível, dos mais insignificantes até os mais constrangedores detalhes. Milhares de encontros informais desfilavam diante dos seus olhos, como se sua janela fosse uma espécie de camarote registrando o desfile de acontecimentos aleatórios, desde fofocas, até brigas entre bêbados no bar da frente. “Será que eles não entendem?”, disse João, pensativo enquanto observava a chuva cair mais forte. Em vez de perder seu tempo com coisas idiotas, ele acreditava que a melhor estratégia era ficar em casa com seus escritores favoritos, continuando sua pesquisa em crítica cultural.
Felizes com a notícia que seu velho amigo retornou, alguns de seus colegas de ensino médio foram até a casa de João, querendo reencontrar novamente aqueles olhos castanhos e aquele sorriso que tranquilizava até o mais melancólico dos homens. A primeira a aparecer na janela foi Letícia, uma mulher de 24 anos, cabelos loiros, pele clara. Ela sempre frequentava a casa de João quando eram pequenos.
- Olá João, disse Letícia. Você quer fazer parte do meu culto da igreja, como nos velhos tempos? Eu sou a nova pastora agora, sabia? Vai ser ótimo, você vai gostar
- Oi Letícia. Eu já superei tudo isso, minha amiga. Todo mundo sabe que religião é só um conforto psicológico, um mecanismo de defesa diante de um mundo insignificante ou até um manto que esconde uma violência patriarcal ou capitalista. Você, uma mulher e proletária, deveria ser a primeira a desconfiar dessas instituições.
- Qual o seu problema, João? Que resposta mais agressiva!!! Você sabe da importância da fé na minha vida, da nossa vida – Respondeu Letícia, desapontada
- Correção, da “SUA VIDA”. Nunca estive melhor, nunca me senti tão vivo quanto agora. Por favor, me deixe em paz. Você fede a ideologia!!!
- Não precisa ser tão grosseiro, João. Faça como quiser – disse Letícia, retornando triste e com algumas lágrimas nos olhos
O segundo a chegar perto da janela foi Rogério, 23 anos, um homem alto e carismático. Ele se divertia muito pedalando com João nas manhãs de domingo na fazenda da Tia Sara.
- Iai João, beleza? Rapaz, eu recebi dois ingressos do jogo entre Bahia e Santos. Você ainda tem a camisa do nosso tricolor? Espero que não tenha esquecido do nosso time do coração. Te pego aqui às 19:00, certo?
- Oi Rogério. Tem anos que não assisto uma partida. Futebol é só uma droga que distorce a mente dos ingênuos, além de reforçar estereótipos sexistas. Você já ouviu falar da tese do “pão e circo?” Pois é, felizmente já me libertei de tanta ideologia, espero que entenda.
- Poh cara, que conversa é essa? É algum tipo de brincadeira? – Perguntou Rogério com um riso embaraçoso
- Nada de brincadeira. Eu só amadureci nos últimos anos, só isso. Uma pena que vocês não fizeram o mesmo.
- Não precisa ser grosseiro, cara – disse Rogério xingando, ao mesmo tempo que seguia até a rua
A terceira pessoa que chegou na janela foi Sérgio, 25 anos, um homem baixo com um pouco de barba no rosto. Ele gostava de roubar goiaba com João nos domingos no sítio de Seu Tito.
- João meu chapa, quanto tempo, não é meu parceiro? Rapaz, saiu ontem velozes e furiosos 11. Lembra quando a gente assistiu os primeiros na casa de dona nininha? Vamos lá!! Tem uma sessão às 20:00 hoje
- Oi Sérgio. Você sabe o que existe por trás desses filmes? Pelo seu rosto inocente, parecendo uma mistura irritante de alegria e estupidez, com certeza não tem a mínima ideia. São tantas estruturas e sistemas dominando corpos e mentes. Você acha que assiste essas bobagens porque quer, porque decidiu, mas, na verdade, é apenas uma peça no tabuleiro sistêmico.
- Como assim, João? Que sistema, cara? – Pergunta Sérgio, quase sem palavras
- Só o fato de perguntar isso, diz muito sobre o estado em que você se encontra– Responde nosso herói
- Que estado? – diz Sérgio, confuso
- Apodrecendo em alienação – finaliza nosso sociólogo
- Você tá estranho, João, muito estranho. Adeus!!
A quarta pessoa que surgiu na janela foi Téo, 23 anos, um homem alto, moreno e olhos castanhos. Ele costumava nadar com João no rio da cidade toda sexta-feira à tarde depois da escola
- Oi João!!! Vou agora até o bar do Zé Leleu tomar uma. Ainda gosta daquela velha cervejinha? Vamos lá!!!
- Oi Téo. Me desculpe, mas parei de beber. Todo mundo sabe que por trás desse álcool existe toda uma indústria perversa ou, no mínimo, algum trauma de infância buscando compensação. Enquanto seu corpo tem um prazer imediato, a longo prazo está sendo capturado por forças que desconhece. É isso que eles querem...
- Eles quem, João? Do que você tá falando? – Perguntou Téo, chocado
- O sistema Téo, o sistema... – disse João, olhando no horizonte enquanto a chuva não parava de cair
- Rapaz, você ficou esquisito. Não sei o que aconteceu, mas não quero muita conversa – se despede Téo
- Faça como quiser. Vá lá beber sua preciosa cerveja e não esqueça de provar sua masculinidade frágil enquanto engole as gotas desse símbolo socialmente aceito – fala João em tom irônico
A última pessoa que chegou na janela foi Beto, 25 anos, o melhor amigo de João. Eles cresceram praticamente juntos, um na casa do outro.
- Iai meu irmãozinho, quanto tempo, não é? Quero comemorar sua volta com um churrasco enorme, como aquele que a gente fazia no passado. Espero você amanhã na minha casa!!
- Oi Beto. Me desculpe, mas eu não como mais carne. Eu me libertei desse discurso carnista, desse sistema que tomou conta dos nossos corpos
- Como assim? O churrasco não é só carne rapaz, é um encontro, uma troca de experiências. Nosso batizado teve churrasco, nossos aniversários tinham churrasco... tudo tinha churrasco – disse Beto, decepcionado
- Lamento Beto, mas eu já superei essa fase. Além disso, não quero continuar amigo de um genocida animal... – afirmou João com ódio nos olhos
- Eu nem sei o que dizer... – se despede Beto
Com o passar dos anos nosso protagonista foi se afastando de tudo e todos. Todas as instituições e seus rituais eram vistos como tentáculos de um sistema operando nas sombras, um grande inimigo oculto nas menores brechas, nos mínimos detalhes. Cada prazer sentido era interpretado como uma ideologia, cada memória revivida era vista como um sintoma, cada experiência era um simples pretexto de estratégias traiçoeiras, cada relação era uma violência disfarçada, cada verbo apenas uma corrente oculta. Seus país começaram a ficar preocupados, muito preocupados... Nem mesmo palavras como “mãe” e “pai” saíam da boca de João. Ele os chamava de “reprodutores”
- João, eu sou sua mãe e esse é seu pai. Merecemos respeito!!! – Gritava dona Maria com lágrimas nos olhos
- Vocês são farsas, miragens. “Mãe” e “Pai” são produtos convenientes em circuitos estruturantes, apenas prisões que sufocam nossa liberdade, artifícios criados por um sistema e seus infinitos mecanismos de dominação – respondia
- O que aquela faculdade fez com você, meu filho? – Desabava dona Maria com o rosto encharcado de lágrimas, enquanto seu Miguel abraçava forte sua mulher em prantos
- Me libertou, mamãe... me libertou – Respondeu João com firmeza na voz
Nos cinco anos seguintes, seus pais morreram e João transformou a casa em uma fortaleza. Ninguém entrava ou saia, a não ser produtos orgânicos e veganos depositados em um buraco especial feito na porta. Até mesmo as janelas foram fechadas com placas de madeira. Décadas e décadas passaram e ninguém ouvia falar de João. Dentro da casa, vizinhos afirmam que a todo momento só escutavam uma coisa, um único grito um pouco abafado pelas inúmeras placas de madeira: “VOCÊ NÃO VAI ME PEGAR... VOCÊ NÃO VAI ME PEGAR. EU ESTOU LIVRE, ESTÁ OUVINDO?!!!!”
Quando faleceu, na parte da frente da sua lápide estava escrito: “Aqui jaz João da Silva Foucault, o mais crítico dos críticos"
Excelente texto, professor. Como sempre nos trazendo potentes críticas e reflexões.
Ótimo texto professor. Fiquei com pena do João não ultilizou os conhecimentos que adquiriu de forma adequada e acabou se tornando escravo dos próprios conhecimentos, se tornou um sociólogo extremista e paranóico. O texto foi construído de uma forma bem engraçada. 👏🏽👏🏽
Belo texto Professor e uma excelente crítica ao extremo academicismo. Diante das várias camadas que a produção propõe, ficarei em reflexão. Gratidão por partilhar.
Nas intrépidas formas amorfas que um dia foram seus corpos, duas grandes cavidades nebulosas residem onde um dia foram olhos. Essa é a aparência daqueles contaminados pelo academicismo exacerbado, que não conseguem ver senão pelos olhos de uma criticidade forjada a base poeirenta de livros, muitas vezes lidos sem o crivo do real e do alegórico. Excelente texto, professor. Meus parabéns!
Uma bela sátira que traz muitas reflexões sobre a forma que o dito "pensamento crítico" é construído e disseminado na chamada "comunidade intelectual". A escrita me recordou muito a forma humorística e ácida que nosso querido Machado de Assis utilizava. Parabéns! É um belo texto e muito bem humorado. Também, é um conto triste, pois, ressalta uma realidade comum que vemos no dia a dia nas universidades. Infelizmente, durante a minha formação atual eu convivo com algumas pessoas que têm comportamentos semelhentas ao de João da Silva Foucault. Me entristece notar que pessoas assim terminam afastando todos que lhe eram queridos, justamente por não saberem (ou ignorarem) que na vida e no cotidiano daqueles que estão fora do meio acadêmico…