No artigo, A Bolsonarização do Brasil, a cientista social, Esther Solano, realizou uma longa pesquisa de campo com manifestantes à direita, desde 2015. A pesquisadora pontuou as seguintes características dos anseios dos manifestantes, antes mesmo de Bolsonaro ser eleito.
a) Falavam sobre alguém diferente, antissistema, outsider; b) os partidos políticos eram vistos como fisiológicos e indistintos; c) os políticos tradicionais e a política vistos como algo sujo e eminentemente corruptos; d) apoiavam totalmente a Operação Lavajato, captaneado por Sérgio Moro; e) defendiam a ideologia hiperindividualismo/meritocracia contra as políticas sociais; f) eram anti petistas; g) anti- esquerdistas (comunismo em todo lugar); h) contra os igualitarismos; i) apoiavam o anti intelectualismo (professores, especialistas e artistas); j) moralizavam a política: adversários políticos vistos como inimigos do povo, do país; l) apontavam os inimigos da moral e dos costumes; m) atacavam pautas identitárias sempre favor de um padrão tradicional hetero/patriarcal/cristão.
Pois bem. Bolsonaro foi eleito Presidente da República, em 2018, com 57,8 milhões (39,3% do eleitorado) de votos contra 47 milhões (31,9% do eleitorado) do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Mais de 21% se abstiveram de votar, e somando votos nulos e brancos, 28,5% não escolheram um candidato. Este último dado mostra em que buraco nós estamos.
Bolsonaro capturou, eleitoralmente, frustação, medo, ódio, desesperança do futuro de 57,8 milhões de brasileiros. Utilizou a insatisfação em potência eleitoral, muito causada por crises econômicas e políticas, sobretudo por casos de corrupção nos governos anteriores.
O fato grave é que o presidente nunca, em sua campanha e trajetória como deputado do baixo clero, foi um lobo em pele de cordeiro: é um ser transparente. Sempre se postou como um extremista: mandou fuzilar FHC; disse que prefere um filho morto a ser gay; estava sendo processado por incitação ao estupro; fazia apologia ao Golpe de 64 e ao torturador Brilhante Ustra. Tudo isso, e muito mais, já se sabia. Mas, mesmo assim, alçou ao posto mais alto da República.
Um pensador importante nos ajudará na argumentação a seguir, iniciada no artigo de Renato Lessa, “Homo Bolsonarus”. O filósofo da vez é Thomas Hobbes, que escreveu o Leviatã, em 1651. Esboçou a criação do Estado, o animal artificial, como uma fabricação humana importante para solidificar uma ordem social.
Hobbes detalhou o estado de natureza como um período pré-civil - Idade da barbárie -, no qual a lei do mais forte prepondera na relação (o homem é o lobo do homem) em que cada qual é juiz em causa própria. O Estado nasce como uma natureza de segunda ordem, com qualidade duradoras, através de um contato social entre indivíduos desejosos de garantir suas próprias existências.
Mas o que representa e defende Bolsonaro e os bolsonaristas, no Estado atual que já é constituído pela aparelhagem institucional herdada da Constituição de 1988?
O Bolsonarismo (um tipo ideal como um conjunto de ideias, não tão coerentes, seguidas à risca por uma parcela considerável da sociedade) não é fascismo, pois não têm por objetivo colocar a sociedade dentro do Estado (isso é totalitarismo). Na verdade, é uma tentativa de devolver a sociedade ao estado de natureza. Devolver a sociedade ao estado de natureza é deixar que os próprios indivíduos se guiem por seus próprios instintos, por ações espontâneas, por suas próprias forças, por suas pulsões. Não há mediações. É, portanto, a radical ausência do Estado (e das instituições que fazem parte) na condução das interações sociais. O estado de natureza é, ao fim e ao cabo, o modelo ideal da sociabilidade bolsonarista.
As “assimetrias naturais” de poder (os mais favorecidos historicamente têm mais poder e direitos) é o elemento de configuração básica e espontânea da sociabilidade bolsonarista. Devolver a sociedade ao estado de natureza é o mesmo que deixar que os próprios indivíduos (com distribuição de poder desigual historicamente) se virem. Daí o libertarianismo bolsonarista.
Esse pensamento sustenta que o Estado deve ausentar-se de funções civilizatórias, como minimizar a desigualdade e as injustiças históricas, exemplo de negros, indígenas, judeus, lgbtquia+, mulheres. O indivíduo, aqui, aparece como se surgisse do nada: um ser abstrato, sem história, sem classe, sem cultura, sem valores, sem privilégios. Em suma: sem concretude.
Mas qual é a agenda bolsonarista? A destruição do poder constituído. O objetivo é desfazer as referências normativas e regulatórias da Constituição democrática de 1988.
Liberar é o mote central: liberdade para andar sem máscara; liberdade para garimpo em terras indígenas; liberdade para desmatar; defesa do excludente de ilicitude (policiais podem atirar pra matar sem consequências); liberação de porte de armas e munições em escalas inauditas por pessoa; decisão sobre tomar vacina deve ser de escrutínio individual; tentativa de suspender radares das rodovias; aumentar a quantidade de pontos da carteira de motorista; desvalorização da cultura política dos movimentos das minorias. Em suma: barbárie.
A linguagem formal da Constituição, e dos ritos republicanos, é substituída pela linguagem informal e superficial do chefe, diariamente. É o “acabou, porra!”. É a intimidação de jornalistas, especialmente mulheres. É a linguagem chula contra negros, nordestinos, esquerdistas. Tudo isso como prática corriqueira no espaço público.
O chefe político serve como aglutinador de impulsos agressivos e violentos. Os representados, de comportamentos excessivos e pouco polidos, sentem-se autorizados ou estimulados pelo chefe a agirem primitivamente, agressivamente e violentamente, inculpados de suas ações. Afinal o vulgo "mito" os representa!
Bolsonaro chama de "liberdade" o desejo por um mundo que não diga a ele o que pode e o que não pode fazer. É contrário da visão moderna, liberal, de que a liberdade acaba quando começa as leis, ou até onde elas permitem.
“A liberdade é o direito de fazer tudo quanto as leis permitem: e, se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, não teria mais liberdade porque os outros teriam idêntico poder” Barão de Montesquieu.
Para concluir, deixo em seguida os atributos do homo bolsanarus, do já citado artigo de Renato Lessa.
1 – Primado da ação direta e intimidação: não há espaço para o diálogo ou reflexão. É ataque à pessoa, seus princípios, valores, seu físico, opção sexual.
2- Horror à mediação: tudo deve ser centrada na figura do chefe maior. Todo o resto só atrapalha as ações do líder.
3 Horror à abstração: orientação por inimigos e alvos a abater. Odeia a complexidade. O mundo deve ser simples.
4- Impermeabilidade à experiência: totalmente convictos, dogmaticamente, às suas ideias.
5 - Índole libertária: é a favor da desativação das instituições e normas que regulam a vida social.
Até a próxima!
Link da imagem: https://nossaciencia.com.br/colunas/dependencia-e-morte-o-brasil-da-barbarie-bolsonarista/
Referências
LESSA, Renato. Homo Bolsonarus. In Serrote, julho, 2020, Rio de Janeiro, p 46-65.
SOLANO, E. A bolsonarização do Brasil. In: ABRANCHES, Sergio et al. Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 307-321
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