"CÊ VAI SE ARREPENDER DE LEVANTAR A MÃO PRA MIM": a expansão da Lei Maria da Penha e o reconhecimento tardio da proteção homoafetiva
- Nieissa Pereira
- 23 de mar.
- 3 min de leitura

A aplicação da Lei Maria da Penha para a proteção de casais homoafetivos e mulheres trans representa um importante passo no combate à violência de gênero. O Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou esse entendimento, reforçando a necessidade de uma interpretação inclusiva da lei, um verdadeiro avanço na proteção contra a violência doméstica, mas também deve ser vista como um reconhecimento tardio da negligência do Estado com corpos dissidentes. Durante anos, o Brasil manteve uma interpretação engessada da legislação protetiva, ignorando a vulnerabilidade de grupos historicamente marginalizados, como pessoas trans e casais homoafetivos masculinos.
Mas então o problema sempre foi jurídico?
Não, meu caro leitor (a). A Lei Maria da Penha é uma lei robusta e bem construída, pois contém dispositivos suficientes para abarcar a violência baseada em gênero e não apenas na condição biológica da mulher.
Então qual é o real problema?
Ninguém poderia imaginar (contém ironia), mas sinto informar que o problema sempre foi político e estrutural, pois reconhecer que homens gays, mulheres trans e outras identidades LGBTQIAPN+ sofrem violência doméstica significaria enfrentar o machismo, a transfobia e a homofobia institucionalizadas. Quando, em 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que mulheres trans também deveriam ser protegidas pela Lei Maria da Penha, apenas corrigiu uma distorção óbvia e que há muito permeava os debates dos ativistas, mas não garantiu, na prática, o acesso real à proteção para essa população. Agora, com o novo entendimento do STF, amplia-se a interpretação, mas permanecem dúvidas sobre a efetividade dessa decisão diante da resistência do próprio sistema de justiça em lidar com a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+.
A violência simbólica, conceito apresentado por Pierre Bourdieu, é um fator central nesse debate. Ela se manifesta na exclusão sutil e persistente de determinados grupos das proteções legais e sociais. Quando um casal gay busca uma delegacia para denunciar violência doméstica, o primeiro obstáculo é lidar com o preconceito dos próprios agentes do Estado, moldados por uma cultura patriarcal que ainda enxerga relações homoafetivas sob o prisma da marginalidade. Esse mesmo sistema, que por décadas negou proteção a mulheres trans sob o argumento biológico, agora precisa lidar com a violência entre homens, desafiando a visão de que a vulnerabilidade é exclusiva das relações heteronormativas.
Outro ponto que não pode ser ignorado é que essa decisão do STF, embora represente um avanço, não resolve as falhas estruturais da Lei Maria da Penha na sua aplicabilidade real. A ausência de políticas públicas específicas para grupos LGBTQIAPN+ em situação de violência doméstica continua a ser uma pedra no sapato. Não há casas de acolhimento suficientes, tampouco delegacias especializadas que compreendam as especificidades dessas vítimas.
Além disso, a formação dos operadores do direito ainda está distante de uma compreensão efetiva da diversidade de gênero e orientação sexual. Muitos juízes, promotores e delegados seguem aplicando a lei com uma visão biologizante e moralista, o que compromete a eficácia da decisão do STF. A simples ampliação interpretativa não garante que casais homoafetivos, especialmente homens gays e mulheres trans, terão o mesmo amparo que mulheres cisgênero já possuem – mesmo estas enfrentando enormes dificuldades para acessar medidas protetivas.
A música "Maria da Vila Matilde", de Elza Soares, que inspira o título deste artigo, é um hino de resistência contra a violência doméstica. Seu verso icônico – "cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim" – traduz a luta por autonomia e proteção das vítimas. No entanto, a pergunta que fazemos é: a quem o Estado permite esse direito de resistência? Se a decisão do STF não for acompanhada de mudanças estruturais, continuaremos a viver em um país onde apenas algumas violências são reconhecidas e combatidas, enquanto outras seguem sendo invisibilizadas pelo próprio sistema que deveria erradicá-las.
FONTE:
MIGALHAS. STF decide que Lei Maria da Penha se estende a casais homoafetivos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/425170/stf-decide-que-lei-maria-da-penha-se-estende-a-casais-homoafetivos. Acesso em: 23 fev. 2025.
PEREIRA, N.; TERCEIRO, B.; BRASIL, V. VIOLÊNCIA SIMBÓLICA CONTRA A MULHER TRANS: UM OLHAR METAFÍSICO SOBRE A LEI MARIA DA PENHA. Revista Ratio Iuris, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 24–46, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rri/article/view/65629. Acesso em: 23 fev. 2025.
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