É comum escutarmos que o ciúmes é uma emoção normal e natural sentida pelo ser humano, e pode até mesmo ser interpretado como uma grande prova de amor.
Eu e Foucault, dizemos que não.
O ciúmes é uma emoção complexa que mobiliza diversos sentimentos, apoiado na competitividade afetiva. Não falamos de algo normal e natural, mas sim de algo normalizado e naturalizado socialmente.
O primeiro passo é compreender que o ciúmes, convoca a necessidade de lidar com o medo, o controle, a validação, a insegurança e a possessividade.
Até aqui os argumentos já foram suficientes para que você deixe de pensar que o ciúmes é uma prova de amor? Vamos conversar um pouco mais, eu, você e Foucault.
É verdade que essas paradas precisam ser validadas e que é bacana quando a gente reconhece o que estamos sentindo. Com o ciúmes sempre existiu uma tendência à normalização; como se a interpretação de que ele é uma demonstração de afeto, justificasse a falta de problematização.
Atualmente, acontece um segundo movimento (que eu acredito estar relacionado com a forma em que as pessoas têm visualizado o fenômeno da não monogamia no ocidente contemporâneo) que parece algo como uma marginalização da sua existência; preciso ser evoluído e não sentir ciúmes.
Entre naturalizar e marginalizar, surge um novo grupo social que defende a validação do sentimento com a necessidade de problematizações sobre ele (eu, você, Foucault e esse texto nos localizamos aqui, me acompanha?).
Depois da validação da emoção, das entrelinhas e da pessoalização de situações-exemplo (essa/s que você começou a pensar e que te motivou a me ler agora), vamos explorar alguns pontos discutidos por Foucault que nos ajudarão a compreender melhor quais implicações que atravessam esse rolê do ciúmes.
Para começar, não esqueça de que lugar esse texto está sendo escrito e onde você se localiza nisso tudo. Falamos de uma atual construção de sociedade alicerçada na monogamia hierarquizadora, no conservadorismo religioso e na competitividade neoliberal. Dessa forma, não caia na ingenuidade (nem no discurso desleal) de achar que essas coisas não afetam a nossa forma de interpretar e sentir o amor/afeto em nossas relações.
Foucault é muito conhecido por discutir sobre poder, vigilância, disciplina, sexualidade, instituições e como essas temáticas interferem na construção da subjetividade e identidade humana. O que o ciúmes tem a ver com isso?
Se você respondeu: TUDO, você acertou!
O ciúmes combina uma série de sentimentos, aliados com fatores sociais e culturais. Então, o ciúmes é tanto uma emoção, quanto uma construção social. E, definitivamente, não é uma prova de amor (e por que mesmo a gente quer tanto colocar esse afeto à prova, constantemente?).
Esse é o tamanho da sua complexidade. Normas culturais (como os padrões monogâmicos), debates relacionados aos papeis de gênero (como as relações de poder associados ao estereótipo do feminino e do masculino) e a romantização do ciúmes (como a que a gente vê nos filmes melosos de ‘’amor’’ e nas mídias) são alguns dos pontos a serem problematizados.
Segundo Foucault, a gente tende a sofisticar nossas formas de controle social. Se antes, amarrávamos os culpados em cavalos até que seus corpos fossem desmembrados em praça pública, para que fossem punidos, hoje, caminhamos muito mais numa perspectiva de vigilância e autovigilância sutil e sofisticada.
Julgar e vigiar é uma tecnologia de poder fortíssima. O sentimento de estar sendo vigiado que a sensação de monitoramento romântico gera, promove uma autovigilância orientada pelo medo de desagradar a pessoa amada ao ‘’alimentar’’ seu ciúmes com determinado comportamento.
A investigação do outro sobre nós (muitas vezes vestida de cuidado), gera o controle de algo que precisa ser governado/administrado para que a fidelidade e a exclusividade sexual sejam preservadas. Nascem os acordos, os contratos e as regras.
Que estratégia nutre isso? O discurso de que o ciúmes é normal e natural, construindo assim o controle de uns sobre os outros.
A ferramenta do ciúmes num relacionamento orienta nossa subjetividade pontuando o que é ou não ‘’permitido’’. Nesse momento, a gente é reprimido e se reprime sob a justificativa de que não queremos machucar a pessoa querida, ao mesmo tempo em que essa pessoa precisa fazer o mesmo por nós. O ciclo está formado e se retroalimenta.
Nessa conversa, a maior contribuição de Foucault é a possibilidade da compreensão de que o ciúmes é um dispositivo de poder.
Fala-se do controle do corpo e do desejo, da necessidade de possuir e de ser exclusivo, da moralização compulsória da sexualidade e do comportamento, das desigualdades de gênero e da internalização de regras malucas (como não poder andar de mãos dadas, transar, mas não dormir na mesma cama, não assistir série tal ou filme Y com outra pessoa), numa tentativa desesperada de conquistar a lealdade/fidelidade de alguém, para que a gente continue atribuindo ao outro a responsabilidade de não nos abandonar, quando estamos fazendo isso todos os dias ao nos submetermos a essas lógicas (foi mal, alecrim, mas isso é uma verdade).
Isso porque, acreditar que outra pessoa nos deve algo do qual não encontramos em nós mesmes, e investir essa enorme energia para garantir que as pessoas correspondam a isso, é a pior das traições.
Panóptico é o conceito de Jeremy Bentham para idealizar a prisão perfeita. A distribuição do poder da vigilância gera uma sensação constante de estar sendo observado, mesmo que isso não seja real. Nesse sentido, o ciúmes é o nosso panóptico romântico que nos aprisiona num jogo comportamental incessante (que tende a falhar desde a sua gênese), na busca pela garantia de algo que jamais poderia ser cobrado a outra pessoa.
Eu e Foucault pensamos isso sobre o ciúmes, e você?
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Entregou tudo! Por isso que toda a discussão comportamental/psicológica é também é uma discussão política
Eu gostei do texto e me entreti nas reflexões, mesmo que em partes me ressoe confuso. Não faço ideia dos significados de boa parte dos termos, mas pude captar o espírito. Bom trabalho e boa escrita me vi rindo quando me peguei em pensamentos das situações exemplos qual se refere no texto. E me parece validador e lisonjeiro ser alvo de ciúmes — mas isso deixamos em off.