A morte e a banalização da existência nunca estiveram tão atreladas a um governo democraticamente eleito como no Brasil dos nossos dias. Diz-se muito que Bolsonaro semeia o ódio. A meu ver, para ele e seus asseclas o ódio é tão somente um instrumento para se alcançar seu hedonismo manifesto na matança, no extermínio de pobres, pretos, índios e das chamadas minorias sexuais e de gênero. Mais do que odiar, eles são indiferentes à dor alheia, e isso é mais perverso do que o próprio ódio, pois este comporta e se reproduz na expectativa do ódio contrário, do espelhamento colérico. A indiferença é autônoma, independe de um ódio contrário, de uma indiferença contrária, é patologia psíquica, no caso do bolsonarismo, patologia coletiva que usa do ódio para promover a morte, o antibrilho, a antivida, a antiexistência. Fruto de espíritos doentios, é a antiforça que vem como num vórtice a tragar as esperanças e sonhos de um país. Noutros termos, estamos lidando com o ápice do ressentimento civilizatório tal qual descrito por Nietzsche, ou melhor, não estamos lidando, porque quem lida sabe manejar, bem ou mal, e nós, ao contrário, estamos sendo engolidos, com nossas forças, por essa antiforça que paralisa instituições, sociedade civil e até o mais rebelde dos revolucionários. De tão absurda e fraca, essa antiluz obscurantista acaba arrastando tudo o que é forte e belo para a sua câmara fria, antessala da opacidade produtiva, calorosa e reluzente.
Não, esse não é um texto de lamentações. Assumindo que a dialética hegeliana dá o tom da dinamicidade dos fenômenos universais, vislumbro na política, universal e substrato da convivência social, o meio mais eficaz e legítimo para se combater as trevas, como campo e caminho que ainda possuímos para ressignificar o mal e tensioná-lo até que este caia no abismo do inferno. A política é a configuração dialética do nosso autocontrole enquanto sociedade, não no sentido de barreira, mas, diversamente, de autodomínio, de posse das próprias rédeas, do horizonte de possibilidades de uma convivência mais lúcida, digna, fraterna, da grande realização coletiva e individual. O Espírito Objetivo está aí, e ele é maior que essa turma sem empatia. Na soma das forças, o nosso espírito de sociabilidade é constantemente atravessado pela potência do existir. Quem existe, resiste, e não precisa ser nenhum revolucionário convicto para ter essa ciência, muito menos nesses tempos. E deste modo, resistindo ao existir apesar de, a antiforça, mais cedo ou mais tarde, tornar-se-á pequena, ainda que o tamanho do absurdo que é sua natureza última tente continuar lhe oferecendo sombra e abrigo. Assim, mesmo a maior das aberrações ainda estará suscetível à potência-vida, que a triturará em seu radioso devir.
Centro, terceira via, esquerda, direita democrática, centro-esquerda, um pacto entre todas essas forças, enfim, é o que muito se fala, o que muito se planeja, mas a nossa dor é o agora e ela dói como metástase social, e não sabemos em que pé estaremos daqui a mais de um ano. Ficam as perguntas: para um agente da antidemocracia, como é o caso do nosso excrementíssimo presidente, por que a insistência em dar-lhe o direito ao jogo que ele próprio despreza, às regras organizadas pelas instituições que ele repudia e com os meios aos quais difama? Para quem leva seu povo para o abate, não seria absurdamente inadmissível permitir-lhe a condução de seu plano de morte por mais quatro anos? Talvez sua estratégia seja a de se salvar pelo excesso. Explico abaixo.
Bolsonaro cometeu tantos e tantos crimes de responsabilidade, que a normalidade da antirregra passou a colonizar a esfera da regra, não em tom substitutivo, mas na forma de efeito paralisante. A quantidade absurda de desvios, crimes e quebras de decoro deu-se de tal modo, que a simples possibilidade de pensar em tocar um projeto de impedimento e depois descobrir que aquele ou aquele outro poderia ter sido mais consistente talvez gere uma sensação de estresse por ansiedade nas nossas instituições. Pois é, ainda não inventaram um Prozac institucional. E com a antipesquisa sendo compulsivamente promovida por esse desgoverno, por essas terras é que ele não será inventado, tenho por certo. E há, ainda, a possibilidade de que a verborragia e os ataques concretos ao Estado democrático e à própria população, por parte do capitão-pijama sujo e sua facção, venham a constituir tão somente uma artilharia de prevenção, pois, na prática, talvez a canalha que dirige Câmara e Senado opte por seguir experimentando uma nova droga, forjada na mistura de convalescência com o mal por covardia, interesse político-econômico rasteiro e incompetência diante das monstruosidades surreais dessa gestão. Também é possível, por fim, que estejamos diante de um misto disso tudo. E agora, mais que nunca, torna-se impossível abrir mão daquele chavão sociológico de que o Brasil não é para amadores – sim, a capacidade de parte de nossa casta política de estremecer diante do mal é possivelmente menor que a de tocar o barco dos seus vícios tradicionalíssimos.
Talvez só nos reste torcer para que o tempo passe logo e para que o coronavírus caia naquela piada sem graça e desbotada que versa ser Deus brasileiro e fique, enfim, com medo dos castigos do Todo Poderoso. Neste caso, sim, poderemos ter alguma sobrevida até 2022. E nem vamos pensar na esperança sendo vencida pelo ódio, quando aquele outubro chegar, ou melhor, que nem ousemos pensar nela sendo vencida pela indiferença, pois a história tem mostrado ser essa, e não o ódio, o inimigo maior da sociedade, da República e do Espírito Objetivo. Até lá, vamos existindo, pois isso certamente é, e isso por si só, a negação absoluta, a antítese dessa horda bárbara que tem adoecido mortalmente o nosso país.
*Mestrando em Ciências Sociais pela UFBA. Instagram: @antoniodanilopereirasantana
* Link da imagem: https://oglobo.globo.com/brasil/temos-de-agradecer-nossa-direita-diz-bolsonaro-no-fim-de-motociata-no-rio-25030528
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