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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

EMPRÉSTIMO


Por Maria Ávila*



Existe provocação maior, para uma escritora submersa em seus devaneios matinais, do que palavras em letras pretas sobre um fundo amarelo-girassol? Talvez sim, mas na poesia cotidiana da minha segunda-feira absolutamente normal, isso bastou. Mas vamos aos fatos: Lá estava eu, caminhando pelas ruas de Salvador, quando li em um papel: “EMPRÉSTIMO – Pague no cartão de crédito”. Mas, apesar do calor, da máscara, das preocupações e das cinco palavras após o traço, apenas a primeira ecoou como sino de Igreja do Centro Histórico tilintando ao meio dia.


“EMPRÉSTIMO”, o que na vida passa disso? Tudo é um empréstimo, um momento, uma brevidade fugaz e bonita. A saúde, o intelecto, a sorte, a família, a fama, o amor. Sim, o amor também é empréstimo, escolha, troca. Não adianta alimentar o ego tratando o efêmero como posse. Alguém nos empresta seu tempo, energia e bem-querer, pagamos com cartão de carinho, respeito e afinidade. Mas um dia o tempo passa, a energia acaba, o bem-querer não passa disso, o carinho é de irmão, o respeito é ponto final e afinidade só se for com a distância- de você.


Para além do amor, um cargo. O chefe de todos os chefes, a líder de todas as líderes, até o dia da demissão. O atleta número um, até o dia do acidente. A placa amarelo-girassol, até o dia em que, o próprio sol, a desbota. Alguns empréstimos duram mais tempo, é claro, uns até o dia em que a morte cobra o empréstimo da vida e o ciclo se encerra, para outro surgir. “Quem empresta, não presta.” Porque o CD volta arranhado, o livro todo amassado e o dinheiro, muitas vezes, não volta. Acho que o segredo é esse: Nada fica intacto, nada permanece, mesmo com o sol que sempre amanhece e a noite que nos empresta o show da lua.


Nas palavras de Frida Kahlo: “Nada é absoluto. Tudo muda, tudo se move, tudo gira, tudo voa e desaparece.” A famosa pintora mexicana, antes de ser pintora sonhava em ser médica, mas experimentou ao longo de sua história algumas doses do fel do destino, sobretudo no acidente cruel que sofreu aos 18 anos e que, além de a afastar dos seus maiores sonhos, marcou seu corpo até o fim de seus dias. Mas dentre tudo isso, a dor (ou a resistência a ela) a emprestou a arte: foi na cama que Frida começou a pintar. Não romantizo tamanho sofrimento, mas enxergo o empréstimo que as cores lhe cederam acendendo sua vida em cada pincelada.


Se você ainda não conhece a história de Frida, indico que leve a sua alma para um passeio na força vulnerável dessa grande mulher. Mas antes, obrigada por emprestar os seus olhos às minhas palavras. Agradeço também aquele cartaz amarelo com suas letras pretas pela inspiração inusitada e gostosa que me trouxeram, não há nada mais clichê do que falar sobre finitude, mas o clichê não recebe esse nome à toa. Seguirei aqui pensando no quanto nada disso me pertence, apesar dos pronomes e sentimentos possessivos. Sugiro que faça o mesmo, até que a rotina venha nos distrair ou o encanto da vida faça nossos olhos brilharem.


Existe provocação maior para um ser humano breve, submerso em seus devaneios existenciais, do que a fugacidade da vida? Talvez sim. Mas enquanto não descobrimos, que sigamos emprestando esperança uns aos outros.



* Escritora e Organizadora da Antologia Mulheres, Afeto e Liberdade. Instagram: @mariamariapoesia



Link da imagem: https://medium.com/nisia/frida-e-as-reflex%C3%B5es-para-tempos-de-turbul%C3%AAncia-c1b601fa7499

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