* Por Stefanie Moreira.
O uso das plataformas digitais veio para ficar, não é mesmo? Quem de nós quando necessitamos de qualquer coisa não damos aquela velha procurada no “paigoogle” para verificar se não há alguma plataforma que forneça o que precisamos de maneira ágil e sem muita dificuldade e naquele precinho. Pois é...
Mas você já parou pra pensar no que está por trás disso tudo? Já parou pra pensar como é trabalhar nessas plataformas? Já ouviu esses trabalhadores sendo chamados de empreendedores?
Em minha pesquisa de doutorado tenho me dedicado a estudar um fenômeno chamado “Uberização do trabalho” e vou compartilhar um pouco das discussões levantadas nesse novo arranjo de trabalho para vocês. O uso das plataformas digitais é um fenômeno global e é visto hoje como o carro chefe das novas formas de organização do trabalho. É comum que trabalhadoras e trabalhadores sejam chamados de empreendedores e que muitos deles internalizem esse discurso. Nessas plataformas o indivíduo não estabelece nenhuma relação contratual, apenas dispõe o seu serviço, ficando responsável pelo seu próprio trabalho e consequentemente ao seu sucesso financeiro e profissional.
O trabalho nessas plataformas possui algumas características peculiares a esses novos arranjos de trabalho. Em primeiro lugar, o contrato de trabalho dá lugar aos termos de uso. Quando adere a uma plataforma, a trabalhadora e o trabalhador interessado se tornam um colaborador da empresa. Se por um lado, essa característica é destacada como uma vantagem pela facilidade de um indivíduo se inserir numa atividade laboral, por outro, a plataforma considera esse trabalhador como independente e, como regra geral, a plataforma não fornece nenhum meio necessário para a execução do trabalho. O equipamento utilizado para trabalhar (motocicleta ou bike, telefone celular com sistema Android, plano de dados 3G, caixa térmica ou baú) é quase sempre responsabilidade do trabalhador, que já deve tê-los ou devem adquiri-los quando inicia a prestação laborativa.
As empresas-aplicativo vêm se apresentando como mediadoras entre oferta e procura, se inserindo na chamada economia baseada no compartilhamento e se eximindo de qualquer responsabilidade com o trabalhador. Segundo as plataformas, os trabalhadores realizam um trabalho e são pagos pelos próprios clientes, embora esse pagamento ocorra por meio do aplicativo. Nesse caso, segundo as plataformas, elas não contratam o trabalhador, e, assim, dizem não ser responsáveis por ofertar qualquer assistência ou de prestação de treinamentos, nem mesmo garantir os direitos básicos de um trabalhador contratado.
O gerenciamento do trabalho é mediado por algoritmos. Algumas plataformas, em especial as de transporte de pessoas, conseguem por meio da tecnologia, e principalmente por meio dos algoritmos, ter acesso ao local onde estão os trabalhadores e conseguem ainda prever o local e o horário em que a demanda de corridas será maior. Assim, a plataforma molda a oferta em decorrência às informações obtidas. Esses algoritmos operacionais das plataformas não são criados no vácuo, mas sim, projetados dentro de uma determinada mentalidade de gestão. E são responsáveis pelo caráter gamificado (aumentando a oferta financeira em decorrência da dinâmica) que as plataformas utilizam para manter os trabalhadores logados em suas plataformas por mais tempo.
O local de Trabalho é o ambiente Virtual. Nesses novos arranjos de trabalho não há escritórios para os motoristas parceiros, somente há escritório para manter a rede em pleno funcionamento para garantir a fluidez da produção. É considerada fábrica enxuta. Essa situação pode comprometer a qualidade de vida dos trabalhadores que possuem uma longa jornada de trabalho, ficam sentados a maior parte do tempo e muitas vezes necessitam esperar longos períodos de tempo até encontrar um local de apoio que possa atender suas necessidades.
Mas, por que é importante problematizar o empreendedorismo nesses novos arranjos?
Primeiro, é importante destacar a diferença entre os desenvolvedores dos aplicativos que são aqueles que estão no topo da pirâmide. Esses são os que mais faturam com o uso da tecnologia proporcionada pelas plataformas digitais e apps. Em contrapartida, os trabalhadores que estão na base na pirâmide, realizam o trabalho operacional e possuem uma baixa remuneração.
Em segundo lugar, essa conceituação dos trabalhadores como empreendedores de si mesmos é utilizada para justificar a falta de direitos, como FGTS, férias remuneradas e 13º salário, o que gera uma economia significativa para as empresas, mas que pode comprometer a qualidade de vida dos trabalhadores. E em terceiro lugar, essa conceituação costuma gerar nos trabalhadores uma pressão constante para que eles sejam mais produtivos e eficientes, como se fossem verdadeiros empresários, o que incentiva jornadas de trabalho exaustivas e também pode gerar problemas de saúde física e mental.
Se a gente for levar em consideração o conceito do que vem a ser um empreendedor, nós já teremos uma boa base para essa discussão. Segundo Ferreira (2010) “Empreendedor” é “aquele que é capaz de desenvolver e levar a cabo novos empreendimentos, novas empresas”. Sob o aspecto jurídico, “empreendedor” define “aquele que toma a seu cargo uma empresa” (DINIZ, 2005). O empreendedor, desse modo, tem total controle sobre o seu negócio, será que é esse o caso de um trabalhador em uma plataforma?
Há uma série de características que são esperadas de um indivíduo que seja realmente um empreendedor, porém, no trabalho realizado por plataformas elas não se sustentam. A flexibilidade do trabalho dá lugar ao uso de gamificação pelas plataformas no intuito de manter o trabalhador sempre logado. O controle realizado pelo algoritmo substitui a suposta falta de hierarquia. As demissões dão lugar ao bloqueio temporário ou permanente, caso o trabalhador não aceite um determinado número de tarefas, caso se envolva em manifestações políticas contra a empresa, ou caso seja denunciado por má conduta, sem que haja uma transparência nesses processos, aviso prévio ou indenização. A trabalhadora ou o trabalhador passa a assumir todos os riscos de sua atividade laboral, sem suporte ou apoio organizacional. Por exemplo, se a(o) motorista se machuca, se a entregadora ou o entregador cai, esses riscos e os prejuízos materiais são de inteira responsabilidade deles próprios.
Por esses e outros fatos, a ideia de empreendedorismo é totalmente abalada pela realidade constatada pela atividade laboral desenvolvida nos aplicativos e plataformas digitais. É necessário destacar que essa realidade acontece principalmente em plataformas de serviços e atividades operacionais. Há plataformas voltadas para um público especializado, tais como advogados, médicos, psicólogos, entre outras profissões que podem apresentar características menos rígidas aos trabalhadores, permitindo ao trabalhador um maior controle sobre sua remuneração ou a não necessidade de estarem conectados no app a todo momento. Contudo, é notório que há um uso impróprio da narrativa do indivíduo como empreendedor. Esse uso tendencioso do conceito de empreendedorismo direcionado a esses novos arranjos de trabalho pode gerar um ambiente de incerteza e insegurança social, além de um processo de individualização em que cada sujeito passa a se perceber como desvinculado de qualquer projeto coletivo, o que pode prejudicar a construção de relações de solidariedade e cooperação no ambiente de trabalho. O empreendedorismo torna-se genericamente sinônimo de assumir riscos da própria atividade.
Finalizando esse raciocínio, nota-se que o discurso de empreendedor é veiculado em meio a Uberização do trabalho como forma de obscurecer as relações entre quem produz e detém o capital e quem executa o trabalho operacional. Assim, desaparece a relação de emprego e aparece uma multidão de empreendedores de si. Por essas e outras, é importante trazer essa discussão para a sociedade como um todo, pois nós utilizamos e mantemos essa estrutura. É importante refletir sobre os impactos da uberização do trabalho na vida de trabalhadoras e trabalhadores em todo país e solicitar garantias a condições de trabalho justas e dignas, com remuneração adequada, segurança no emprego e benefícios básicos de proteção social. Só assim poderemos construir uma economia mais justa e sustentável para todos.
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* Stefanie Moreira. Doutoranda em psicologia pela UFBA. Instagram: stefanie_oliver
Link da imagem: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/a-uberizacao-sem-volta-e-a-pedagogia-do-socialismo/
Referências:
Abilio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, 18(3), 41-51.
Alves, A., Bagno, L. I. M., & Gonçalves, N. (2020). Entregas mediadas por aplicativos e o mito do empreendedor de si mesmo na pandemia do coronavírus. Revista de Direito da UNB, 4(02), 85-116.
Ferreira, A. B. D. H. (2010). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, coord. Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. 5ed. Curitiba: Positivo.
Sabino, A. M., & Abílio, L. C. (2019). Uberização-o Empreendedorismo como novo nome para a exploração. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, 2(2).
Que maravilha um texto explicando tão bem essa temática! Quase trabalhei na área de comunicação do app justo, uma alternativa aparentemente mais justa dessa condição. Queria saber sua opinião sobre essa opção.
Gostaria de parabenizar pelo texto incrível! Sou motorista de aplicativo por 6 anos consecutivos e nunca me senti dona de nada rsrs...Temos liberdade de escolher nossos horários, não temos ordens para cumprir, porém temos que dá muito duro pra tirar nosso sustento na verdade servimos à um sistema, ou seja, somos autônomos, ou profissionais liberais, ou qualquer outra coisa menos empreendedores.
Sim Carlos, muitas pessoas se apegam ao fato de poderem escolher qual horário vão sair de casa para trabalhar, focando atenção na flexibilidade e autonomia que o trabalho na plataforma garante! Porém, não perceberam que agora são os algoritmos que ditam as regras, fazendo uso da monitoria e da gamificação para mantê-los cada vez mais conectados!
Que texto maravilhoso, esclarecedor! Se o sujeito se acha empreendedor e não tem controle sobre o que ganha e pode ser desvinculado da plataforma, como é que ele pode administrar o negócio que não é seu?