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Feminismo e suicídio: precisamos falar sobre sofrimento psíquico e desigualdades de gênero





Sendo uma pessoa que passou por depressão, ansiedade, automutilação e ideação suicida, quero falar o quanto o gênero influenciou na qualidade da minha saúde mental. Mas, como fazer isso?


Tenho essa ideia de texto há muito tempo e, com o Setembro Amarelo, acabo pensando ainda mais no assunto. Estava com muita dificuldade em saber como apresentar algo tão delicado, sem incorrer no erro de simplificar o sofrimento humano ou superficializar uma discussão séria. Cada realidade é muito complexa e por isso, quero falar desse tema com muito cuidado e sabedoria.


Há poucas semanas, descobri um caminho interessante para a minha abordagem. A pós-doutora em psicologia clínica, professora e coordenadora do grupo de pesquisa de saúde mental e gênero do CNPq, Valeska Zanello, lançou um artigo junto com doutorando Felipe de Baere sobre uma pesquisa que teve como objetivo traçar os efeitos das violências de gênero em mulheres de diferentes orientações sexuais, sendo tais experiências relacionadas a ideações e tentativas de suicídio.


O artigo se chama “O comportamento suicida em mulheres de distintas sexualidades: violências silenciadas” e pode ser facilmente encontrado no link do instagram da Zanello. Lendo seu conteúdo, pude encontrar as palavras que explicam como o processo da violência de gênero participa do sofrimento psíquico das mulheres, ao ponto delas cogitarem tirar suas próprias vidas. Vou trazer cinco categorias elencadas pelo artigo, e apontar semelhanças ao desenvolvimento de sintomáticas negativas na minha saúde mental.


1. Masculinidades adoecedoras


“(...) envolve as vivências de violência sofridas pelas entrevistadas em suas relações com os homens, foi diferenciada em dois modos: por omissão e por ação. Isso se deve ao fato de que, nas múltiplas dimensões de suas vidas, a vulnerabilidade psíquica das mulheres não decorre apenas das agressões sofridas de forma explícita, mas também das experiências de abandono e indiferença indeléveis que, do mesmo modo, lhes são constitutivas."

Com esse trecho apenas, poderia escrever uma imensa lista de violências perpetradas pela convivência com homens. Mas achei interessante frisar a omissão como uma forma - também - de violência. Penso automaticamente nas marcas do abandono paterno na infância, que começou na convivência fria com um pai alienado de carinho, até seu sumiço completo. A omissão prevaleceu também no meu casamento, no jogo do “quente e frio”, e no peso da carga mental - se alguém carregava demais é porque o outrem não carregava nada...


2. Ideal estético


“Se o ideal estético de mulher no Brasil é a jovem branca, loira e magra, quanto menos uma pessoa estiver alinhada a esse modelo, maior a probabilidade de ela experienciar o desconforto da desaprovação social. De acordo com os relatos das participantes, esse incômodo tem se manifestado desde a infância, momento no qual as crianças já demonstram o agenciamento de preconceitos com aquelas consideradas ‘diferentes’.”

Acho que a infância é um lugar factível para já começarmos a sentir o peso do ideal estético. Consigo lembrar de momentos em que tive altas crises de choro e ansiedade porque meu irmão dizia que eu tinha “nariz de negão” e “orelhas de Dumbo”. O nariz era um sinal claro do racismo estrutural, e meu medo era de me assemelhar a um corpo negro - que nessa época ocupava um lugar estético bem baixo. Sobre as orelhas, passei anos escondendo-as com o cabelo, mesmo que estivesse um calor terrível (e um coque fosse a solução).


3. Relações Amorosas


“Ao se constituírem no dispositivo amoroso, as mulheres tendem a priorizar os relacionamentos em relação às demais áreas de suas vidas (Zanello, 2018). Além disso, por se tratar de uma dimensão identitária para as mulheres, a conjugalidade torna-se fator de sofrimento quando precisam despender grandes esforços para se manterem na relação. Nesta categoria, ao contrário das “masculinidades adoecedoras”, os fatores que geraram sofrimento psíquico para as mulheres não foram agenciados diretamente pelos seus parceiros, mas na relação que elas estabeleceram com seus ideais conjugais.”

Esse trecho resume quase vinte anos da minha vida. Desde que passei a cogitar ter um namorado, isso se tornou o centro da minha vida. Extrema dedicação aos relacionamentos e inúmeros sacrifícios físicos, mentais e financeiros. E o que falar do enorme medo de perder o amado e ficar sozinha? Tinha picos altíssimos de ansiedade e depressão na crise dos relacionamentos, me levando a episódios frequentes de automutilação.


4. Cuidar


“Subjetivadas no dispositivo materno, desde cedo as mulheres são orientadas a enaltecer a tarefa de maternar e, consequentemente, a elas é atribuída a maioria das atividades que envolve o zelo e a dedicação aos outros (Zanello, 2018). Essa pedagogia social faz com que as mulheres se constituam em um heterocentramento, no sentido de priorização do outro.”

Acho que o meu casamento e maternidade são os lugares onde mais vivi esse sofrimento psíquico sobre o cuidar. Sendo uma mãe natureba - cheia de culpas - e uma mulher religiosa que buscava ser a esposa ideal - em uma relação cheia de jogos manipulativos, foi nesse momento em que os ataques de pânico e ansiedade chegaram com frequência. Eram crises de tontura, vômito, náuseas, formigamento e fortes dores de cabeça. Nesse quadro, as ideações suicidas aumentaram muito…


5. Heterodissidência como devassidão -


“Embora a dissidência sexual não lhes seja uma dimensão identitária em comparação aos homens, as lésbicas e mulheres bissexuais também apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente das violências e repreensões sociais.”

Como me reconheci como pessoa não binária e pansexual há pouco tempo, ainda não vejo um quadro de forte sofrimento emocional. Percebo, na verdade, uma certa ansiedade e medo pontuais, com picos quando fico com alguma menina na balada. Mesmo escolhendo espaços que acolhem LGBTQIA+ , bate aquela aflição de que algum homofóbico seja violento comigo.


Acho que esse material pode ajudar a enxergarmos como o processo de sofrimento psíquico como um todo precisa ser atravessado pela perspectiva de gênero. O artigo, inclusive, alerta como o meio médico tende a ouvir pouco essas questões e “resolve-as” através de medicamentos. Pontua ainda como as mulheres são maioria, do que os homens, em tentativas de suicídio. Porém, como os homens morrem mais nas suas investidas, as estatísticas acabam focando no suicídio como uma tendência maior na população masculina.


Com o olhar trazido através desse conteúdo, acredito que muitas mulheres podem aprender a nomear certas situações traumatizantes com a perspectiva de que aquilo não foi fruto de suas incapacidades particulares, mas de um demarcador social que interfere na qualidade da sua vida e especialmente na sua saúde mental: o gênero e suas desigualdades.


FONTE:


BAÉRE, Felipe de; ZANELLO, Valeska. Suicidal behavior in women of diverse sexualities: silenced violence. 2020. Acesse em português, aqui: https://drive.google.com/file/d/1j4GxbdZtSWXafonFgp6KmPzA33P1rK5m/view












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2 Comments

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Priscilla Sobral
Priscilla Sobral
Oct 21, 2022

Carla amo a forma que vc escreve elucidando e clareando questões tão complexas. Senti dor e tristeza ao ler porque ser mulher é essa luta mesmo.

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Oct 04, 2022

Karla,é um texto forte e considero que se a perspectiva masculina não mudar,casos como os ocorridos com você infelizmente não irão arrefecer. É uma luta inglória,no entanto,é preciso força sempre

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