Paulo Freire é uma referência em todos os sentidos da palavra, assim como o patrono da educação brasileira desde 2012. Não existe nenhuma pessoa no Brasil, e nenhum acadêmico de ciências humanas e sociais no mundo, que não tenha encontrado pelo caminho o nome “Paulo Freire” em livros, palestras, revistas ou programas de TV. Sua trajetória não é apenas admirável, com vários títulos e reconhecimento nacional e internacional, como o prêmio Unesco de Educação e Paz (1986), mas também inspiradora em cada detalhe. Apesar de sua importância, e até da sua personalidade meiga e contagiante, Paulo Freire continua sendo um pensador, uma figura com certas premissas dentro do campo pedagógico, sejam elas éticas, filosóficas, sociológicas, ou seja, um pacote específico de abordagens aberto a análises e até críticas.
Como vai ficar claro nessas linhas, esse é um texto progressista, por isso não espere ataques morais à Paulo Freire, como acontece quando reacionários e conservadores surgem no horizonte. Todas as críticas ao longo dessas poucas páginas falam sobre o conteúdo do que foi escrito, dos bastidores dos seus argumentos, partindo da pedagogia do oprimido e aterrissando na pedagogia da autonomia, ou seja, do seu “primeiro” ao último trabalho. Em outras palavras, o que é criticado nessas linhas não é o caráter de Paulo Freire, mas algumas das referências teóricas nos bastidores. Como um tipo de contraste, convido Bruno Latour ao palco, acompanhado de algumas de suas principais ideias, ao mesmo tempo que nos afastamos um pouco da clássica “pedagogia crítica”, embora sempre reconhecendo suas contribuições e relevância.
No campo pedagógico, do marxismo (Lukács, Paulo Freire) ao liberalismo (Popper), passando por autoras pós-estruturais (Bell Hooks) e estruturalistas (Bourdieu), o raciocínio parece sempre o mesmo, um tipo de versão meio antropocêntrica, bem humanista. “Educar” significa libertar, significa oferecer ao estudante a chance única de ver a verdade, as coisas nos bastidores, os reais inimigos ocultos nas sombras, ou seja, “educar”, desde o livro VII da república de Platão, é uma importante “saída da caverna”, uma fuga da neblina densa ao nosso redor. Agora mesmo, por exemplo, existe nos meus olhos um pano obscuro, um tecido metafórico de ideologia me impedindo de ver as coisas como de fato são. Ser crítico significa descortinar a essência oculta das profundezas do mundo, observando suas verdadeiras forças, ao mesmo tempo que nos libertamos de uma vida superficial e alienante. Graças a essa “pedagogia crítica” é possível refletir por conta própria, não mais como marionetes de forças que nos ultrapassam, de instâncias traiçoeiras operando nas entrelinhas da linguagem e das instituições. Finalmente, a Liberdade!!!!
Críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da práxis. Isto é, se nossa ação involucra uma crítica reflexão que, organizando cada vez o pensar, nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Este precisa alcançar um nível superior, com que os homens cheguem à razão da realidade. Mas isto exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a libertação (FREIRE, 1968, p. 81)
Parece óbvio esse percurso de raciocínio, eu sei, mas as coisas são mais complexas do que parecem. Seguindo por outros caminhos, em Latour “educar” é um verbo pós-humanista, descentrado e até perigoso. Ele não é um gesto de libertação das amarras estruturais, sistêmicas, um tipo de saída da matrix, como a “pedagogia crítica” gosta de sugerir. “Educar” é afetar, além de permanecer disponível diante de certas partes do mundo antes inexploradas ou despercebidas por mim. Por exemplo, quando pensamos no feminismo, o objetivo, segundo Latour, não é a emancipação dos indivíduos, tornando cada um deles mais livres, mais felizes, mais nobres, mas sim afetar os seus corpos, permitindo a cada um deles um contato maior com as experiências do mundo. Uma feminista consegue ser afetada de novas formas, ampliando o seu campo experiencial, circunstância rara em uma religiosa reacionária. Isso não significa que a feminista é mais livre, mais inteligente, mais feliz ou mais nobre do que a reaça. Não tem a ver com revelação, mas com afecção.
Imagine o exemplo preferido de Latour, o “Sommelier”, o sujeito apreciador de vinho. Qual a diferença dele e eu, alguém sem qualquer preparo no universo das uvas, um completo iniciante? O Sommelier não revela alguma essência oculta do mundo, não é uma criatura nobre e livre, muito além dos idiotas lá fora. Na verdade, o Sommelier tem um corpo mais rico, mais disponível quando afetado pela uva, observando vários detalhes muito além da percepção de qualquer leigo, o que não significa um mérito epistêmico ou ético. Não tem a ver com hierarquia, essência, realidade, “mundo legítimo”, mas com a ampliação de experiências, ou seja, o eixo é sempre horizontal, não vertical, não é para cima, mas para os lados. Depois de uma aula comigo, um sociólogo, o meu estudante não se torna mais livre, ou mais inteligente, ou mais ético... ele se torna “mais afetado” por certas porções de realidade antes inexploradas. Esse tom “experiencial” não confere ao meu estudante, ao menos de antemão, qualquer tipo de vantagem, a não ser aquela “estética”, envolvendo a capacidade de afetar e ser afetado. Da mesma forma que o sommelier, o seu corpo pode digerir novos tons de mundo, ampliando o seu campo de afecção.
Quando estudantes tem aulas de química, física, biologia, arquitetura, música, cinema, ciência política, sociologia, eles ampliam os seus campos experienciais, com cada uma dessas disciplinas expandindo seus corpos além do esperado. O ponto não é revelar a verdade por trás das ilusões, “subindo além das nuvens ideológicas”, mas “horizontalizando” as possibilidades, aprendendo a si afetar com novas pessoas, circunstâncias, objetos e relações. Esse é o papel do professor... horizontalizar corpos, não verticalizar consciências. Ao menos é isso o que chamo de pedagogia pós-humanista.
Além disso, no universo das “pedagogias críticas” existe um retrato bem curioso sobre como as coisas funcionam. Aparentemente existe lá fora dois tipos de humanos: a) as pessoas com “mente aberta”, capazes de refletir sobre si e sobre o mundo ao redor e b) criaturas incapazes desse tipo de abertura. O motivo dessa incapacidade carrega vários contornos, sejam eles éticos (as pessoas são más) ou epistêmicos (as pessoas são burras ou alienadas). De qualquer forma, a fronteira é muito clara: pessoas críticas x pessoas não críticas. Por outro lado, segundo Bruno Latour, o protagonismo está no mundo e não em certos sujeitos especiais. Na prática, se você perceber com calma, ninguém lá fora, ninguém mesmo, está disposto a colocar seus valores e seu senso de realidade em risco de propósito. Nós pensamos criticamente não porque existe algo de especial em nossa cabeça, ou por escolha, ou por mérito, mas como um mecanismo de defesa em um mundo que nos desafia.
Em Latour, o universo não é separado entre pessoas críticas e não críticas, já que criticidade é uma característica do próprio mundo, da resistência produzida pelas circunstâncias sobre mim. Por que o campo das humanas tem pensamento crítico? Segundo Latour, não tem a ver com a iniciativa de criaturas especiais e abertas, mas graças aos inúmeros obstáculos no caminho do meu desejo. Em outras palavras, ninguém gosta de contingência, complexidade ou contradição, mas somos obrigados, pelo mundo, a digerir essa característica. Não existe aqui um abismo entre criaturas esclarecidas e abertas à crítica, de um lado, e criaturas estúpidas e fechadas em si mesmas. Eu só penso porque sou obrigado por um mundo que me ultrapassa, que me desafia, me insulta, me provoca. Ou seja, o protagonismo, no raciocínio pós-humanista de Bruno Latour, sempre está no mundo, não em professores, alunos, muito menos na relação entre os dois.
Como resultado dessa autonomia das coisas, desse caráter desafiante, o processo pedagógico não tem como objetivo nos colocar no controle das circunstâncias, como imaginaria um recorte mais antropocêntrico, mas sim reconhecer o quanto o mundo nos ultrapassa, o quanto a contingência faz parte da estrutura da realidade, ao invés de um simples problema temporário e vertical. O aluno, segundo Latour, precisa digerir esse detalhe recalcitrante da vida, por mais indigesto que seja, tudo isso dentro de um mundo resistente às minhas categorias práticas ou teóricas, implodindo minhas expectativas. A palavra principal no dicionário latouriano não é “empoderamento”, termo muito antropocêntrico, mas sim “diplomacia”, uma prática criativa diante de um mundo complexo e angustiante. É preciso sempre negociar com forças humanas e não humanas, em um espaço descentrado onde nós não somos criaturas incríveis capazes de criar o mundo à nossa imagem e semelhança, mas simples negociadores em um campo complexo, contingente e frustrante. A pedagogia pós-humanista descentra o aluno e o professor, descentra até mesmo suas agências, deslocando todas as suas pretensões, sejam elas boas ou ruins, democráticas ou autoritárias. O mundo lá fora não é um produto prático e teórico dos humanos, como sugere a pedagogia crítica, mas um espaço complexo e de intensa negociação, um fluxo de experiências que escapa, transborda e ameaça todo esse universo humano demasiado humano.
Referência:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974
Excelente abordagem, Thiago! Curto muito os seus posts.
Texto interesante, e bem escrito , sobre uma nova pedagogia, a pós humanista. Mas vamos a algumas observações que, certamente, ajudam a provocar o debate. 1- Como é possível explicar indivíduos que parecem pensar além do seu tempo? Já que as afecções na sua vida cotidiana é comum ao seu ciclo cotidiano ,por que essas figuras parecem pensar além? 2- Já que o mundo é complexo, e o corpo é capaz de experienciar novas e novas práticas, como se estabelece criterios de convivência, seja sobre questões éticas, epistémicas ou jurídicas? 3 - Ao descentrar o professor e o estudante, não corremos o risco de subvalorizar autoridades, a ponto de tornar as relações cada vez mais fluidas, sem apoio? Essa forma…
Excelente análise Thiago, parabéns!
Ainda assim, com esse conhecimento e afeicões que transbordam em todos sentidos e espaços, cantos, recantos e encantos contínuo acreditando na autonomia possível dos cidadãos que buscam na educação um via de evolução, descentramento e práticas conscientes.
Excelente provocação. Nas referências você não citou nenhum livro específico de Bruno Latour. Por quê? Fiquei curioso, quero ler algo do Latour.
Muito bom texto,Thiago,porém acredito que Freire tinha objetivos muito mais práticos da educação,um sentido que,nos tempos que atuou,colocava a educação como uma meta muito mais abrangente,o país tinha analfabeto que só a porra. Não considero que ele tivesse instrumentos naquele período para conceber a educação como afetação,de acordo com esse olhar Latouniano. Talvez,só talvez.
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