Não é a primeira vez que escrevo sobre esse tema. Em outubro de 2017, publiquei nessa mesma plataforma de artigos um texto reflexivo sobre o fato do veganismo não ser um estilo de vida possível para todos. Na ocasião, tentei estabelecer uma fronteira social para a prática, ainda muito restrita às classes mais favorecidas, ambientes acadêmicos, e indivíduos que exercem habilidades laborais intelectuais e burocráticas. Numa live dividida com um colega, identifiquei após pesquisa que os restaurantes e estabelecimentos especializados para essa causa estavam hospedados em bairros de classe média, com preços nada saudáveis pra economias mais frágeis. Por fim, afirmei, já de volta ao texto anteriormente publicado, que não basta apenas o sujeito substituir um prato caloricamente carnívoro por um equivalente vegano. Há uma série de fatores no meio desse caminho. Vou deixar o link desse texto, já que vou partir pra um outro lado dessa discussão, que é praticamente um segundo volume do primeiro ensaio.
Após apreciar um debate interessante entre colegas do site sobre algumas máximas veganas, me surgiu a base pra esse texto: o veganismo teria limites? Em que aspecto? Os veganos tem atribuições que vão além da retirada de espécimes animais sacrificadas do cardápio, mas rejeitar qualquer sujeição animal. Não consumir derivados, não vestir roupas de seda, lã, ou couro, ser contra experimentos científicos que os utilizem, montar, engaiolar, ou qualquer outra sevícia. É válido todo esse estatuto, afinal.
No artigo lá de 2017, estava sempre mencionando diferenças financeiras para compreender que o veganismo possui marcadores de classe e sugerindo que uma dieta com leguminosas e tubérculos não possui lá muita eficácia em trabalhadores da construção civil, estivadores, e outros empregados que utilizam seu corpo para o sustento cotidiano, e creem na “sustança”, aquela rabada gorda que fornecerá energia suficiente para pegar no batente (a eficácia simbólica, baseado numa teoria de Claude Lévi-Strauss). Tem outro perfil também: dos viventes em comunidades rurais, que pescam, criam aves, e extraem mel como apicultores. Se eles trabalham fornecendo para centros maiores o escoamento de sua labuta, o que seriam deles com a veganização da sociedade? Essas atividades costumam ser geracionais. Também são conhecidos por protegerem a natureza, sobretudo da política predatória das grandes indústrias, que ao poluírem o meio ambiente, matam as espécies. Quem deve ser combatido?
Falando em apicultura, muitos veem com exagero o não consumo do mel, por exemplo. O mel é importantíssimo para as abelhas e, obviamente, não é plausível tirar tão fundamental componente para a vida delas. Porém, há muito se fala da escassez das abelhas, sua provável extinção. Seria pela colheita do mel? Não! A causa levantada é a utilização de defensivos agrícolas. O pólen recolhido por elas já vai intoxicado para a colmeia, o que teria ligação direta com mortes de colônias inteiras. O uso de agrotóxico, além de combater pragas, estimula a produção de mais frutas, verduras, e leguminosas, aquelas mesmas que vão pra nossa mesa muitas vezes pra substituir a carne que a gente quer deixar de comer! Parece contrassenso, né?
Lógico que os veganos combatem essa prática (comum da grande indústria), mas olha como a roda não gira redonda! Sem dizer que não há produção orgânica pra tanta gente!
Apesar de ser muito incipiente, ainda há a previsão da “carne do futuro”. Trata-se de uma remoção de tecido animal, de onde é coletada células para transformação em músculo, estimulado por nutrientes, tornando-se carne. A ciência mantém esperanças que esse procedimento acelere o fim do abate. Deve aparecer uma turma preocupada com o sofrimento do bicho ao ser agulhado pelo cientista? O que pode vir a ser uma mitigação da matança, seria mais um combate na pauta vegana?
Encerro estabelecendo uma distinção entre alimento e comida. Alimento é a refeição diária necessária pra nosso sustento – com toda luta substitutiva de nutrientes que os veganos tanto almejam. Já comida é um item abarcado por culturas, afetos, sentidos, cerimônias, identidades... Como me referi lá em 2017, “é saber que o pato no tucupi, o sarapatel, o churrasco, a buchada de bode e outros pratos pertencem a determinado segmento que articula muitas ações e organizam seus afazeres em torno de diversidades estruturais que os cercam”.
É uma longa discussão, o que afasta o “basta apenas” substituir a carne por substitutivos equivalentes extraídos da natureza pra o mundo ser um lugar melhor. A todo questionamento se atrela uma complexidade, e nada pode ter uma afecção simplória.
FONTE:
IMAGEM: BeefPoint
Comments