29 de maio de 2022, domingo.
Uma vez escrevi que precisava conhecer a atual pessoa que vive em mim, depois de todos os traumas vividos nos últimos anos. Acontece que eu mudei muito e só o tempo fará com que eu me reconheça. Ao mesmo tempo, tenho o talento de evoluir e decrescer todos os dias, fazendo com que o autoconhecimento se torne ainda mais difícil. Apesar disso, reconheço padrões que antes não existiam e agora tomam conta das minhas relações interpessoais: o medo. Vou explicar por quê.
Desde criança, eu tive o “anseio do abandono”. Lembro que ficava muito sozinha em casa enquanto meus pais iam trabalhar e certo dia meu pai chegou mais cedo e me encontrou debulhada em lágrimas, totalmente sem ar e sem conseguir explicar o que havia acontecido. Foi algo tão bobo. Eu estava assistindo Chiquititas e numa cena, uma menininha abandonada no orfanato cantava que não precisavam contar mentirinhas para ela, pois ela sabia que estava sozinha sem os pais. Que eles haviam ido para bem longe e esqueceram que ela tinha nascido. E agora ela está ali sem carinho.
O mais sinistro foi como isso bateu em mim naquele dia. Eu estava sozinha em casa, logo, estava sozinha e sem meus pais. Eu não sabia como chegar até eles e isso configurou o “eles foram para bem longe”, e quanto ao esquecimento do meu nascimento, por que não? Mesmo com a presença deles, eu não sentia carinho. Era tudo muito feito no automático, sabe? E tudo fez sentido pra mim. Eu estava exatamente como a menininha da música. E esse sentimento está comigo tanto quanto naquele dia, mas antes eu não o via, não o enxergava; até que em 2019 tudo voltou.
Com o desaparecimento repentino de Amora, eu percebi que as pessoas poderiam ir embora a qualquer momento. Fosse por querer ou sem querer. Percebi que às vezes é necessário se retirar para sofrer menos e foi isso que eu tentei fazer. Por não ter conseguido, entrei em um limbo gigantesco que durou os últimos três anos. Pesadelos, perdas reais, isolamento, afastamento, decepções e muito, muito cansaço. Se relacionar se tornou uma obrigação, pois eu supostamente precisava demonstrar que “sim, está tudo bem agora; vocês não precisam se preocupar”. Sentia-me culpada por sentir felicidade e logo ela esvaía, pois eu não era digna de sentir tal sentimento sem meu amigo do lado. “Como você consegue sorrir e brincar sabendo que Amora ainda está desaparecido?”, eu me questionava. Lidar com pessoas, com o externo, com as formas de subjetividade alheia não era mais prazeroso, mas sim, um ato de sadismo pessoal. Eu vivia com medo de tudo sumir. Com medo de todos irem embora. Com medo de ser deixada novamente. Aquele sentimento sentido por aquela garotinha de nove anos voltou como se ela estivesse aqui dentro pedindo socorro. Pedindo ajuda. Pedindo carinho, afeto, compreensão.
Mas não veio. As pessoas não compreendiam meu cansaço. Não entendiam que palavras duras me machucavam mais que antes. Não percebiam que eu só precisava de acolhimento. Cansada de tentar explicar o óbvio, eu me isolei. Usando como desculpa a pandemia, fiquei quase dois anos sem sair de casa, sem me relacionar diretamente com ninguém além de minha mãe – que também estava distante desses sentimentos, - até que eu comecei a me incomodar com essa zona de escape. Reli a saga Harry Potter em menos de três meses. Peguei mais trabalhos do que eu deveria e passei horas estudando, escrevendo e presa em mundos virtuais que não são reais.
Ninguém veio. Na verdade, todos acabaram se afastando mais. Eu não queria pedir ajuda; não queria solicitar afeto; não queria precisar explicar meu sofrimento. E isso me fez ficar sem ninguém. “Pelo menos sozinha eu não corro o risco de ser machucada de novo”, justifiquei por meses. Afastei-me de meus amigos, de minha família, não me relacionava amorosamente e vivia em segundo plano, no automático, como meus pais faziam na minha infância. Ignorando todas as faltas, ignorando os pesadelos, fingindo que sim, eu poderia conseguir sozinha. E poderia mesmo... Se não fosse a maldita depressão.
Admiti que alguém se aproximasse. Faz uns seis meses agora. E novamente eu venho me torturando para encaixar na relação. Tenho me torturado para estar. Isso é sadismo. Não quero ser novamente a pessoa que fala o óbvio. Não quero pedir afeto, solicitar carinho ou humilhar-me por amor. Não, não o farei. A tendência é que eu me feche de novo. Que eu comece a afastar as pessoas de mim. Que eu crie um mundinho solitário onde eu me sinta hipoteticamente segura e confortável, mesmo sabendo que ninguém vai vir. O problema é: Quanto tempo eu vou aguentar dessa vez?
Comments